A Ministra, o Dinheiro, a Moda e a Cultura
Outra novela mobiliza o país. No início os personagens eram apenas a Ministra e três estilistas renomados. No momento todo mundo se sente parte dela. Mal estreou e a audiência disparou, inflada pela trama que envolve dinheiro, moda e cultura.
Dinheiro e moda se conhecem de longa data. Ninguém estranha a parceria. Cultura e dinheiro idem: ficam bem juntinhos. A coisa complica quando se promove a união entre moda e cultura ungidas em matrimônio pelo dinheiro público. Aí o telespectador estranha e reclama. Quer saber o que é que uma coisa tem a ver com a outra. O governo/autor, que deu o aval, colhe agora o resultado de não ter no passado oferecido alguma educação sobre o assunto para o seu público/cidadão.
Há tempos a moda quer ser reconhecida como parte da cultura. Não assim, como ela obviamente é, mas oficialmente, pelos mecanismos do poder e do capital. Conseguiu. Há uma nova orientação política no país que reconhece o fato. Ferramentas foram criadas para sedimentar a coisa. Está lá na Lei Rouanet que a moda pode captar dinheiro para suas ações. Com as portas abertas para projetos, o Ministério da Cultura, representado pela Ministra Marta Suplicy fez valer a nova regra e concedeu a permissão para que Ronaldo Fraga, Alexandre Herchcovitch e Pedro Lourenço corressem o chapéu no mercado, devidamente abrigados dentro da lei. Que fique entendido, o governo não deu dinheiro público em espécie para nenhum deles, apenas concedeu o direito de captar financiamento e oferecer renúncia fiscal para os possíveis investidores.
Daí chegou-se a outro ponto. É nele que a meu ver a discussão perde o prumo e embaça. Com diferentes nuances na argumentação, e para justificar o fato, defensores afirmam que moda é arte, e os detratores dizem que não. Quanto a captar dinheiro com o aval do governo, se é, pode. Se não, não pode.
Não consigo entender a conversa por este prisma.
Um vestido, concebido pelo artista Leonilson, não transformou-se em moda por ser um vestido. Trabalhos de Rei Kawakubo, Martin Margiela e Chalayan expandiram o território da moda e nem por isso viraram obras de arte. São fenomenais obras da Moda de um tempo, assim como os de Poiret e Worth são de outro. O que tem valor como expressão da cultura contemporânea é este alargamento. São estas zonas de comunicação entre todas as expressões culturais. Moda inclusive. Não há a menor necessidade de reduzir uma coisa à outra. Nem de fechá-las em si mesma. A discussão não poderia ser mais velha nem a argumentação mais oportunista.
Bem, grite-se o quanto quiser e moda vai continuar sendo cultura. Isto é tão antigo quanto a civilização. Que qualidade de cultura é esta é outro caso. Estamos acostumados a tomar como “arte” a moda que veste a roupa da arte. Moda deve ser avaliada por si mesma. Há tantos valores nos seus processos, tanta cultura material e imaterial envolvida, que a moda deve se dar ao luxo de dispensar parâmetros que não são dela. Além do mais, o mero disfarce na condição alheia é sempre um sintoma de depreciação da própria. Então, porque a moda deveria almejar ser outra coisa? Uma ressalva neste âmbito da questão é que deve ser bem entendido que, ao emprestar referências das artes, ou adotar temas nacionalistas, a moda não garante necessariamente qualidade aos seus resultados.
Moda é cultura. Ponto. Deveríamos ter aprendido isso na escola fundamental. Ponto. Projetos de moda podem ser beneficiados pelas leis que regem a cultura no país. Ponto outra vez.
Voltando ao capital, se não se pode reclamar que a moda ganhou diretamente dinheiro público, reclama-se de que ela possa concorrer com projetos artísticos na obtenção de investimentos. Isto por muitas razões, entre elas a de que a moda teria por trás grupos financeiros que não precisariam dessa ajuda providencial.
Quanto à concorrência, há quem prefira sempre a proteção do Estado à livre iniciativa. Esta é outra discussão. Provavelmente a que está realmente por trás de tudo isso. Nem digo que ela seja sem sentido. As artes enfrentam tanto descaso governamental que era de se esperar a má vontade com a nova atriz. Afinal de contas ela entra em cena disputando os minguados recursos em circulação. Mas afirmo que não há nada de errado no fato da moda, entendida como cultura, poder captar recursos. Erros podem vir na sequência, caso os agentes governamentais se enrolem em favorecimentos obscuros, habituais no país dos votos secretos e de outras práticas duvidosas.
As discussões interessantes me parece que seriam sobre como evitar que os investimentos nas artes não minguem ainda mais, com investidores atraídos pelo retorno midiático da moda. Outro ponto é como a avaliação crítica do que é moda de qualidade e o que não é poderia evoluir no Brasil. Enquadrada como cultura, a moda deve se preparar para ser abordada de forma bem menos complacente. E este é um saldo positivo desta trama. E olha que ela está apenas nos primeiros capítulos.
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