Moda fora do eixo: Texto de Eduardo Motta no lançamento do projeto

Moda fora do eixo: Texto de Eduardo Motta no lançamento do projeto

9 de setembro de 2014 Moda 1

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Algo pode estar fora do eixo de várias formas. No caso da moda, fora do eixo pode significar que ela acontece, geograficamente, em um lugar inesperado. É o caso de se considerar que há vida na moda fora de Paris, Milão e Nova York, e que há moda na Antuérpia, por exemplo. Ou no Brasil. Em outra escala de distâncias, também pode significar que existe moda em Porto Alegre, em Fortaleza, em Roraima, e não apenas em São Paulo ou no Rio de Janeiro.

Geograficamente, hoje mais que nunca, vale a pena imaginar novos territórios para a moda brasileira. Eu diria que isso é mesmo necessário, pois parece bastante lógico que é preciso estancar essa convergência um tanto provinciana, e sob muitos aspectos, insustentável, para centros tão saturados como São Paulo e ver o que é possível fazer localmente.  Além das vantagens práticas e materiais desse redirecionamento – entenda vantagens práticas e materiais como facilidades produtivas e expansão de mercado – também entram nessa lista os ganhos intangíveis, e aqui dá para citar o fortalecimento das culturas regionais e o fortalecimento da autoestima dos criadores locais. Para a moda em geral também é por aí que existe a possibilidade de que surja alguma coisa de novo. Alguma coisa em desacerto com o lugar comum, capaz de combater o vírus de conformidade que tende a transformar a moda em um fenômeno previsível e plano.

 Quanto à sugestão de algo em desacerto, que a expressão fora do eixo levanta, eu gosto dela mais ainda. Faz uma enorme falta para a moda atual um pouco mais de tentativa e erro, de experimentação. É difícil acreditar, mas o mercado força tanto os processos que as escolas de moda já estão ensinando o aluno a fazer coleção “fast fashion”. Ou seja, dificultando ao máximo, pela falta de estímulo, que ele desenvolva uma individualidade criativa. Este não é exatamente o ambiente mais favorável para que aconteçam fenômenos extraordinários, como o que aconteceu na Bélgica, por exemplo, quando um pequeno grupo de alunos talentosos da escola de moda da Antuérpia, o The Antwerp Six, colocou aquele país, espremido entre potências, no mapa da moda global. É um ambiente que também está distante de outra orientação de ensino de moda, a inglesa, cujas escolas funcionam como um celeiro contemporâneo de designers criativos. Não se trata de ir contra uma orientação de ensino de moda de acordo com a qual os alunos aprendam a lidar com a moda em grande escala. Longe disso. A escala industrial é parte inseparável do fenômeno da moda. Entretanto, há alguma coisa entre estes dois universos, aquele que opera com a moda também como atividade criativa e aquele em que a moda é exclusivamente mercadológica que precisa ser abordado.

 Para fazer uma analogia, vou usar o exemplo do cinema. A maioria de nós consome blockbusters feitos em Hollywood. Por outro lado, muita gente consome um cinema de outra natureza, do tipo que se convencionou chamar de alternativo. Pois nenhum executivo de Hollywood vai poder negar que é deste nicho alternativo que saem os renovadores de linguagem do cinema. É dele que surgem novos atores, novas formas de filmar, de iluminar. É dele que saem diretores sem vícios narrativos e com outras inflexões e são eles que mantêm o cinema fresco, vivo, pertinente e necessário. O que há aí, neste caso do cinema, é um sistema que funciona com valores definidos, um sistema em que partes diferentes se alimentam fazendo a coisa funcionar.

 É claro que não dá para tomar uma experiência de outra área ao pé da letra, mas a comparação ajuda a entender o que estou querendo dizer quando reivindico a atenção para uma moda fora do eixo. Na verdade, é uma forma de reafirmar o interesse por aquilo que é novo e fresco, pela moda que estabelece relações mais ricas com a cultura como um todo. Afinal de contas, para que a moda continue a atrair novos públicos ela tem que, de alguma forma, oferecer novos significados e não apenas produtos utilitários e impessoais.

 Hoje todo segmento da arte e das artes aplicadas opera como um sistema. É esta condição que valida cada um deles. Vou fazer uma confrontação rápida do sistema da moda com o sistema da arte contemporânea. Escolhi a arte contemporânea em função da reverência que os atores da moda demonstram por ela.

 No sistema da arte em uma ponta existe o produtor, que é o artista, e na outra existe o público que usufrui da arte como atividade cultural. Eventualmente este público paga para entrar no museu, adquire o livro do artista, ou, no caso daqueles que tem mais sorte, pode até mesmo adquirir a obra. No meio, entre o artista e o público, estão intermediários que articulam o encadeamento entre as duas pontas e configuram o sistema da arte a partir de recortes de significados.

 Falando destes intermediários, na arte moderna existia a figura do marchand, na arte contemporânea existe a do curador. A distância entre um e outro é que enquanto o primeiro essencialmente mediava transações físicas, o segundo media transações de significados, dividindo o mesmo papel com o crítico, ou mesmo incorporando o papel dele. De alguma forma o curador, que fica entre o artista e o mercado, cria uma espécie de filtro de valores que define os sentidos simbólicos da arte e protege o processo criativo.

 Na moda, em uma ponta você tem o produtor, que é o designer e na outra você tem o consumidor. Quem é que está no meio, entre a criação e o mercado? Existe a figura do jornalista de moda, quase sempre com pouca conotação critica, existe também a figura do blogueiro ou da blogueira comercial. Neste caso, na maioria, ainda com menor conotação crítica. Também neste intervalo existe o acadêmico de moda, nem sempre muito à vontade como um possível elo entre a criação de moda e o mercado dela.

 É claro que esta é uma generalização e existem as exceções. De toda forma, a mídia especializada, principalmente, que poderia hospedar as visões críticas que acontecem no tempo rápido da moda, opera como extensão do departamento de marketing da marca, como muito bem descreveu Lars Svendsen no Filosofia da moda. Contribui para este quadro o fato da moda brasileira ser tão jovem que foi preciso criar uma barreira protetora em torno dela, garantindo que ela pudesse se desenvolver. Todo organismo jovem precisa de proteção e não dá para fugir disso. Todo produto precisa ser vendido e este é outro dado incontornável. A superposição destas duas condições, no Brasil, criou uma distorção que de alguma forma pede para ser revista para que a moda possa avançar e abrir outras frentes. Mesmo que pareça pouco seguro, mesmo que esta possibilidade deixe muita gente em pânico, esta camada protetora precisa ser rompida para que a moda possa amadurecer e ocupar outros lugares. Lugares simbólicos primeiramente, mas também outros mercados.

 Recentemente fui a Buenos Aires rever um projeto chamado Mapa di Diseño. Ele é uma iniciativa que tem apoio de várias fontes, privadas e governamentais. O objetivo é fazer um mapeamento dos criadores argentinos e a identificação e promoção da identidade da moda produzida por lá. É um projeto muito interessante. A Argentina é um pais territorialmente menor e exatamente por isso os contornos do projeto ficam mais definidos do que ficariam com uma iniciativa semelhante aqui no Brasil. É ótimo ver de perto esta experiência argentina. Em contraposição à experiência belga, a qual muitos associam a um milagre – claro que um milagre lastreado por uma educação estética muito antiga – a da Argentina é uma iniciativa planejada, desenhada para conferir valor à moda local.

 Estas experiências dos outros, me fazem pensar sobre o que é que nós estamos fazendo aqui. Ou melhor, se da forma como estamos fazendo no Brasil temos alguma chance de que nos aconteçam “milagres” como na Bélgica, ou que surjam resultados de estratégias planejadas, como na Argentina.

 Se o mercado e as escolas no Brasil estão ensinando a alunos que é preciso fazer apenas básicos para sobreviver, o que eles estão dizendo é que é preciso ser conservador para dar certo. O que é uma grande bobagem. No universo da moda tem criadores históricos trabalhando com propostas radicais e se dando muito bem. É o caso de Rei Kawakubo, da marca  Margiela e é o caso de figuras mais recentes, como Rick Owens que tem entregado desfiles pouco convencionais e uma estética particular. É o caso da semana de moda londrina, sempre ancorada em experimentação, é o caso de um João Pimenta no Brasil, que tem linguagem autoral, e é o caso da Escola de moda na Antuérpia, que protege o processo de amadurecimento criativo do aluno. A lista é grande e significativa. Tão significativa que me permite finalizar com esta ideia: Não tem de ser conservador para dar certo!

Eduardo Motta, setembro de 2014

* MODA FORA DO EIXO é um projeto da Radar – Inteligência e Projetos de Moda com o objetivo de criar situações em que se possa registrar e discutir a moda que acontece de maneira inesperada, seja geograficamente ou como forma de expressão. Este texto é uma transcrição da fala de Eduardo Motta (Radar) realizada no lançamento do Moda Fora do Eixo que teve como convidada a curadora do MoMu, o museu da moda da Antuérpia, Karen Van Godtsenhoven e as editoras e jornalistas Patricia Parenza e Patricia Pontalti. O encontro aconteceu no Santander Cultural de Porto Alegre, no dia 04 de setembro de 2014. A presença de Karen Van Godtsenhoven foi uma gentileza do 10° Colóquio de Moda.

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1 Comment

  1. Dayanny

    15 de setembro de 2014
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    Muito bom o texto, Eduardo. Claro, coeso e uma reflexão necessária!

    Abração!

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