MICHELE E A GUCCI ENTRE MORTOS E VIVOS
Na semana passada, a Gucci de Alessandro Michele escreveu mais um capítulo estrutural sobre os efeitos do estilista romano à frente da casa florentina. Na coleção cruise ambientada num cemitério francês, novos personagens foram catapultados para fora da pandora museológica de Michele. O cortejo foi dramático. O espetáculo, duas vezes mais.
Voltando ao passado e revisitando a primeira coleção do nosso herói para a Gucci, era quase improvável imaginar que, em menos de 3 anos, ele fizesse tudo o que fez — ainda que algumas pistas sagazes do criador sem limites tivessem sido engatilhadas e percebidas pelos mais atentos.
A linguagem da adição (e rara subtração) de Michele começou tímida. Como alguém que suplica ficar por um tempo na casa de um amigo solícito alegando precisar de só uma escrivaninha para acomodar seus pertences, mas que logo vai tomando paredes, quartos e quem sabe, todo o resto da casa. No caso de Michele, um arqueólogo sob fascínio da roupa, a necessidade de espaço é imensurável.
Em 2015, quando, de surpresa foi anunciado diretor criativo da Gucci, após saída repentina de Frida Giannini, ele intuiu uma coleção que hoje poderia soar minimalista, mas que na época foi o suficiente para apagar os vestígios da antiga diretora. A mulher proposta por Michele, de sensualidade andrógina e vocabulário erudito, nunca havia visto o sol de Florença até então. Coleção após coleção, o estilista revisitava os arquivos à sua maneira. Nada de olhar para onde Tom Ford ou Frida olharam. As referências dele pareciam voltar às décadas em que a marca pertencia a família Gucci, até perto de sua quase queda no final dos anos 1980, quando a história da maison passou a ser confundida com o roteiro de uma novela mexicana. Não à toa os óculos desfilados na última coleção cruise lembram os que usava Maurizio Gucci — último dos Gucci na empresa — antes de ser assassinado em 1995 a mando da esposa.
Pé por pé, Michele colocou seu nome na mesa dos gigantes. O styling alegórico dele, autêntico e fresco, estava destinado a desafiar o cenário sóbrio que se assentava para além dos limites da fila A. As campanhas ganharam demão amarelada e cenas incomuns. Pintores substituíram fotógrafos. Modelos perderam a idade, o gênero e o rosto. O olhar de contista anacrônico do italiano logo passou para as cenografias dos desfiles. As ambientações escolhidas refletem zonas de passagens por onde transitam todo o tipo de idiossincrasia: corredores de museus, galerias de arte e até uma clínica odontológica.
Para apresentar a coleção cruise 2019, Michele viajou para Arles, uma cidade ao sul da França. O ambiente escolhido lá não poderia ser mais democrático: a necrópole de Alyscamps. O local foi parte do Império Romano na época de Júlio Cézar, celtas e fenícios passaram por lá, Van Gogh e Paul Gauguin idem. Hoje ela funciona como uma avenida de passeio reconhecida como patrimônio da UNESCO. O não-cemitério é terreno para o que parece, mas não é. Terreno que põe lado a lado mortos e vivos, personagens presentificados e vultos dos históricos figurões amigos de Michele.
Entre o som de badaladas e sussurros de preces agoniantes, pagãos e convertidos deslizaram pela passarela em chamas na disputa por capas de veludo, estolas com bordados sacros e casacões com motivos botânicos arcaicos. Feiticeiras inquiridas, viúvas enlutadas e noivas mórbidas paramentaram-se com crucifixos ostensivos, véus brilhosos e óculos geométricos. Da mala vintage e carcomida também pularam boás, golas pontiagudas e camisas transparentes, infestação de broches e um interessante vestido com um ossário bordado em relevo.
Quando o som de violino se agitou indicando uma curva ainda mais sinistra na coleção, surgiu um modelo com máscara de boneco psicótico, um outro trazendo um ursinho de pelúcia e um enrolado na bolsa Jackie estampada com o fauno do Chateau Marmont — hotel hollywoodiano conhecido por histórias assombradas. Astros do rock setentista em calças de lantejoula apertada, socialites jet set de maquiagem borrada e casquetes cravejados por pedrarias, o motoqueiro com a skinny escrita memento mori, o esportista indie no conjunto laminado e sobretudo xadrez. Ou ainda as jovens damas vitorianas com chapéus emplumados e flores recém colhidas entre os braços. Não importa o figurino, a morte não faz distinções quanto às suas amizades.
Passada essa caravana ao submundo, não há dúvidas de que Alessandro Michele cumpre com os requisitos para portar o título de a nova pérola barroca da moda. E também não é difícil provar que poucos na produção atual tem a coragem que ele dispõe. Por conta dele, há um senso de espetáculo e deliciosa transgressão na moda em vigência que há muito não se via. Histórias nunca pararam de ser contadas, mas careciam de um bom showman.
Na semana passada, quando fotos da coleção cruise percorreram o mundo, alguns veículos regiram mal. Isso atesta duas coisas: primeiro, o mundo da moda, que esqueceu seus antecedentes e agora anda fragilizado para esse tipo de abordagem. E segundo, a astúcia de Michele. Ele conseguiu temperar a Gucci ao gosto dos Millenials — hoje ela é reconhecida até mesmo como uma marca esportiva — ao passo que, nas entrelinhas, esteve a todo o momento construindo um mundo muito mais profundo, em camadas e cheio de criptografias. Aos que se perguntavam se o estilista manteria o fôlego nas próximas coleções, fica o recado: não vimos ainda nem a ante sala do acervo pessoal de Michele.
Enquanto ele nos faz lembrar de nossa mortalidade e nos faz perceber que somos mais astronautas do que deuses, enquanto esperamos partir para os campos Elísios ou para o Tártaro, o que nos resta é implorar em uníssono: Guccifique-nos!
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