O lugar maldito da aparência

O lugar maldito da aparência

18 de maio de 2009 Crônicas, Moda 0

Não é verdade que todos que sucumbem ao fascínio da aparência excluem o pensamento crítico sobre ela. Nem o contrário é verdadeiro. Mesmo quem abraça o assunto como objeto de estudo eventualmente se rende ao apelo

sedutor das roupas e outros aparatos de cuidado pessoal. Neste ponto, o passado tem exemplos de sobra. Não se envolvia com as futilidades do guarda-roupa o poeta Byron? Não era um vaidoso consumado o talentoso Oscar Wilde? E, para atualizar um pouco a conversa, quando aceitou a contragosto a encomenda de filmar um documentário sobre o Yamamoto, o Wim Wenders não realizou um clássico que retrata a própria rendição à ascendência do vestuário sobre nossas formas de sentir e pensar?

Há também casos extremados de quem faz da arte de permanecer na superfície a suprema realização da existência. A história tem um exemplar seminal, o dândi, personificado pelo inglês Beau Brummell. Homem tão bem vestido e chegado à vida social que mereceu a inveja de príncipes e nobres entre os séculos XVIII e XIX.

Brummell seguiu fascinando nos séculos seguintes e sobrevive ainda bem saudável no atual. Balzac escreveu sobre ele, Baudelaire idem, e Albey d’Aurevilly também. A Editora Mimo juntou extratos dos escritos dos três em um livrinho só, o Manual do Dândi. Nós, que não temos as rendas – em ambos os sentidos -, que permitiam a Brummel exercitar com absoluta perfeição a arte do ócio e da vida elegante, temos que aproveitar o tempo disponível para praticar o luxo da literatura (li o livro no pouco de indolência que as férias de hoje nos permitem).

Veja este trecho do d’Aurevilly em nota na página 185:

Brummell vestia luvas que moldavam suas mãos como uma musselina umedecida. Mas o dandismo não era a perfeição dessas luvas que, tal como a carne, adquiriam o contorno de suas unhas; o que consistia um ato de dandismo era que elas tivessem sido feitas por quatro artistas especiais, três para as mãos e um para o polegar.

O aparato em torno das luvas de Brummell informa sobre este período de exacerbação do way of life aristocrático, que entrara em decadência e se amaneirava apropriado e reinterpretado por franco atiradores sociais como Brummell. No texto, o autor considera que não era a forma perfeita da luva em si o mais importante, mas o fato de que ela demandava uma força de trabalho desproporcional. Especializada, sofisticada, exagerada, francame te abusiva e destinada a suscitar adjetivos por onde ele passava.

Curiosamente, este fausto que precedia o objeto, e que era pressentido, compartilhado e admirado, não implicava em gerar uma luva vistosa.

Veja o que diz o Baudelaire, na página 14:

O dandismo não é nem mesmo, como muitas pessoas pouco sensatas parecem acreditar, um gosto imoderado pela toalete e pela elegância material. Essas coisas não são, para o perfeito dândi, senão um símbolo da superioridade aristocrática do seu espírito.

Também no texto do Balzac, montado em torno de aforismos tratados como preceitos para a vida elegante, aparece esta ideia de equilíbrio na forma de se vestir associada ao dândi. A roupa deve ser tratada com esmero, mas sem deslizar para a vulgaridade.

O princípio constitutivo da elegância é a unidade Não existe unidade possível sem esmero, sem a harmonia, sem a simplicidade relativa.

Olhando cá do século XXI, os dândis são como mediadores entre o vestuário do passado, destinado à identificação das classes sociais e a moda na era moderna, acessível a todos que puderem pagar por ela e sujeita a expressões individuais.

O apreço de um dândi pela aparência e por códigos de comportamento afetados era um reflexo dos gostos e privilégios exclusivos da aristocracia. Tinha algo de revolucionário na maneira como eles se apoderavam de códigos de aparência e hábitos da classe dominante, para fazer deles o que bem entendessem. Muito além do impacto visual da sua presença, eles escancaravam o fim de uma era. Isto ajuda a entender por que é que Brummell entrou para a história sem ter escrito uma linha, pintado um quadro ou tocado algum instrumento.

Baudelaire anotou:

O dandismo é o último rasgo de heroísmo nas decadências.

E eram abusados estes rapazes, como registrou o Barbey d’Aurevilly:

Um dia, dá para acreditar?, os Dândis chegaram a ter a fantasia do traje lixado. Isso ocorreu precisamente durante o reinado de Brummell. Estavam no auge da impertinência e não conseguiam mais se conter. Descobriram que era muito dândi (não conheço outra palavra para exprimi-lo) mandar lixar seus trajes, antes de usá-los, em toda a extensão do tecido, até que não fosse mais que uma espécie de renda – uma gaze. Eles queriam andar vestidos de gaze, esses deuses! Era uma operação bastante delicada e demorada e, para isso, utilizava-se um pedaço de vidro afiado. Eis aí um verdadeiro ato de Dandismo. O traje pouco importa. Praticamente, ele não existe. Nota na página 184/185- Barbey d’Aurevilly.

Lendo este Manual do Dândi, o que dá gosto é a qualidade da escrita sobre moda, realizada tanto tempo antes dela se tornar área especializada do jornalismo ou digna da atenção acadêmica. Estes autores, que se dedicavam à literatura, à poesia, à filosofia já se perguntavam por que é que nos vestimos desta ou de outra forma e por que, principalmente, nos vestimos de maneiras tão particulares e aparentemente sem nenhuma funcionalidade. Tanto tempo depois, temos um sem fim de respostas e a pergunta continua pertinente. A moda idem.

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eduardo:

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