Narcose

Narcose

18 de março de 2008 Moda, No Radar, Opinião 0


Objetos de moda sempre funcionaram como tickets de acesso a algumas de nossas mais secretas felicidades. Com a profissionalização do setor, as ofertas abundantes, os ciclos organizados, e os eventos espetaculares, hoje o efeito é potencializado quase até a narcose, e todo o fascínio de um mundo de beleza, fama e celebridade, ou que seja apenas de satisfação pessoal, está disponível em alguns centímetros quadrados de tecido. Ilógico e espantoso é verdade, mas desejável e eficiente, como se sabe. O fato é que enquanto nos dão suporte em outras conquistas, (e como fazem isso bem!) estes objetos descartáveis nos dominam inteiramente, e, de um shopping a outro, nos transformamos nestes seres bipolares, com sorte, munidos de cartões de crédito. Uns viciados em picos passageiros de auto-avaliação positiva diante do espelho dos provadores.

Bula

O que torna a moda tão interessante é uma química de ingredientes complexa. Vai do óbvio da matéria prima, da forma e da cor, à denotação de posição sócio-cultural, de sexualidade, e de outros simbolismos, tão poderosos quanto alheios à roupa em si. Estão em voga as parcerias com ações edificantes, por exemplo, coleções produzidas por comunidades carentes, roupa ecológica, etc. Sem querer parecer cruel, digo que é bacana e às vezes dá certo, mas olho vivo, por que a priori boa intenção não é selo de garantia e nem merece imunidade crítica. Outra associação em alta, embora antiga, é com as artes, também uma fonte pródiga de prováveis qualidades superiores. Há uma legião de artistas citados pelas coleções atuais, mas, como no passado, só algumas dobradinhas dão bons resultados.

Recentemente, a dupla italiana Dolce & Gabbana trabalhou com pinturas do expressionismo abstrato: Pollocks dos anos 50 sobre vestidos e saias. (Não é curioso pensar que o trabalho do pintor americano Jackson Pollock nos termos estritos da moda seria tão retrô quanto a recuperação das formas do New Look?) Para Paul Smith, a escolha recaiu sobre as pinturas do inglês David Hockney, minuciosamente incorporadas na cartela de cores da coleção masculina, para a Prada, Egon Schiele, vienense do expressionismo do começo do século XX, e para Herchcovitch na excelente coleção do inverno 2008, o minimalista Sol Le Witt, falecido em 2007, é a fonte para coloridas composições geométricas. Uma das associações mais interessantes dos últimos tempos é da Louis Vuitton com Richard Prince.

Modo de usar

Prince é um comentarista ácido da cultura contemporânea, particularmente a americana, um apropriador de imagens prontas da cultura de massa, e não é artista que se assimile facilmente. Sua obra é formalmente prolixa e nem sempre confortável como costumam ser as escolhas feitas pela moda.No centro dos polêmicos interesses do artista estão questões de autoria e originalidade, que ele põe em cheque assinando imagens criadas por terceiros.

Marc Jacobs, que comanda a Vuitton, uma das marcas mais copiadas mundo afora, põe o dedo no assunto de forma singular, acionando essa provocação consciente com os sentidos da moda (mal localizada pela maioria em alguma esquina entre a arte e o business selvagem) ao fomentar a aproximação com o trabalho do artista americano.

Um ótimo documentário sobre o processo criativo de Jacobs, exibido no Brasil em canal a cabo, mostra uma imagem real do cara por trás dos desfiles milionários e bolsas de 50 mil dólares. Marc expõe de forma desconcertantemente franca, em se tratando de alguém tão poderoso, sua timidez diante da arte. Em dado momento ele gesticula mostrando dois níveis diferentes com as mãos e afirma: a arte está aqui, bem acima e a moda aqui, um nível abaixo.

Mas foi essa mesma reverência que deu origem às parcerias de Jacobs com outros artistas, todas elas culturalmente produtivas e financeiramente lucrativas. Ele mesmo, por si só, é uma figura influente e decisiva na cultura geral, tanto quanto o é no campo circunscrito da moda, essa modalidade de indústria cultural que opera na mesma faixa do cinemão, do turismo de lazer ou da gastronomia, ou seja, como entretenimento de consumo.

Portanto, pague pela moda e você terá não apenas um vestido, uma bolsa, ou um par de sapatos, mas participação em causas nobres, acesso para as artes e seu bocado de auto-estima elevada.

Contra indicação

Atenção: frente a uma associação entre moda e arte, vale a mesma advertência feita sobre moda e boas intenções, em ambos os casos não há nada que justifique uma pane crítica. Use o critério mais simples, aquele que no fim das contas se impõe sobre toda manifestação da moda: não compre se não lhe cai bem.

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