Do Reino de nem tão tão distante
publicado no Usefashion Journal em junho de 2011
Na tela da televisão, uma tomada espetacular do alto da abóbada da catedral gótica registra a cerimônia de casamento que se desenrola 30 metros abaixo. Entre a grande nave e o altar a cauda do vestido desliza suntuosa contra o tapete vermelho. Impossível não compará-la, só para ver se ela resiste, em tamanho e majestade com as vestes eclesiásticas e os chapéus e fascinators que as inglesas gostam de usar. Até que ela se impõe, pensei, e é uma bela imagem, concluí. Corta. A câmara agora se movimenta na lateral do altar. Em plano aproximado ela persegue as trocas de olhares do casal, caça as variações de expressão, e não perde o momento em que a aliança ocupa o devido lugar no dedo real anunciando que a cerimônia evolui rumo ao desfecho. “Impecável”, não se contém a comentarista da TV. “Emocionante” afirma a outra.
Os noivos saem à luz do dia inglês, entram na enorme carruagem e desfilam a céu aberto, em cortejo aristocrático e gracioso, acenando para a multidão até desaparecerem no interior do palácio. Ninguém esconde a emoção quando eles ressurgem no balcão e o rapaz, vestindo um reluzente uniforme militar, se inclina para beijar a moça de branco. Duas vezes e “quebrando o protocolo”, registra a voz feminina duplamente surpresa com a ousadia. “Quem assina o vestido é a Sarah Burton, da casa Alexander McQueen” ouvimos mais uma vez. Um acerto, todos concordam. Eu inclusive.
O Vestido
O vestido é de gazar marfim e cetim branco. O corpete é feito de renda francesa Chantilly e renda Inglesa Cluny. Os apliques florais foram feitos à mão pela Escola Real de Costura em Hampton Court Palace. Ele gruda à parte superior do corpo da noiva, transparente nos braços colo e costas e discreto no decote. Sóbrio, mas indisfarçadamente sensual. A nota oficial que divulgara algumas destas e outras informações, como o fato dos brincos serem de diamantes e os sapatos de cetim duchesse, também anunciara que ele seria uma combinação de tradição e modernidade, atendendo ao desejo da noiva. Confere. Ele é tão bonito que faz sombra aos personagens humanos da festa. É esmiuçado ao vivo por leigos e especialistas, nobres e plebeus, e sobrevive, não há espaço para discordância: é perfeito. A noiva sabe disso, e sorri segura atrás do véu de tule de seda sustentado pela tiara Cartier. “Emprestada pela Rainha Mãe”, registra a especialista que tem uma das falas derradeiras.
Encerrando a transmissão
A TV capricha nos melhores momentos, voltam as tomadas aéreas, os flashbacks da Rainha vestida de amarelo cremoso, das celebridades e autoridades civis e militares e da massa de súditos e fãs da realeza “vindos de todo o mundo” e correndo “civilizadamente” para conseguir o melhor ângulo de visão do beijo duplicado e testemunhado em escala planetária. A transmissão se encerra em meio a frases emocionadas: “Deixa um sentido de esperança na humanidade”, “faz a gente pensar em coisas boas”, “faz a gente acreditar”.
O post, o comentário da leitora, a reflexão
Dali fui direto postar algo na internet, engrossando a massa dos milhões que tiveram a vontade de se casar após a transmissão, mas optaram por algo mais a mão. Alguns poucos leram o que escrevi. Entre os comentários que recebi, um deles me chamou a atenção. “Relaxa!” disse a leitora. Claro que ela se referia ao tom de desconfiança, ou pelo menos de não entrega absoluta ao espetáculo, que ela percebera no texto. Em princípio, reagi. Não me ocupara de mais nada durante cerca de hora e meia e comentara favoravelmente a escolha do vestido, inclusive. Mas é verdade que anotara lá:
Militarismo, monarquia, família, casamento e religião servidos como espetáculo à expectativa global pela tradição.
E complementei com um pouco de sarcasmo, reconheço:
Direto da Londres cosmopolita, e exatamente como na festa de coroação da Princesa do Morango, no interior do Brasil, hoje é dia de todos nós, provincianos globais, reafirmarmos nossa condição de povo com os olhos grudados na tela da televisão.
Na vida real sou vulnerável a finais felizes, a comerciais, casamentos, funerais e batizados. Mesmo a contragosto, admito a comoção diante da parada militar e o embarque involuntário na curva dramática do discurso ruim. Então, qual é? Porque a resistência? Relaxa! Insisto, fazendo coro com a leitora perspicaz. Em vão.
Apesar do assombro com a delicadeza da renda sobre o corpo atlético da Kate Middleton, e com a elegância coreográfica e previsível do ritual, dou-me conta de que o deleite não exclui ler nas entrelinhas a colossal mensagem conservadora daquela “impecável” e “emocionante” peça publicitária. Que não é apenas da monarquia inglesa, afinal de contas.
Ritos acionam forças sócio-culturais complexas, roupas compõem sistemas sofisticados de significação. O branco relativo do vestido e os excessos que ele não tem são tão eloqüentes quanto as grades do palácio de Buckingham, que mantém a multidão à distância, e a presença do astro pop Elton John, lado a lado com o companheiro, entre os convidados.
Além disso, é mais gostoso saborear a festa por inteiro. Aproveito para temperar a degustação com uma idéia do antropólogo Marshall Sahlins que diz que nem tudo que é relevante para o poder é exatamente poder, e assumo a relação onívora com os simbolismos do casamento real.
Para não passar por tenso, à enxurrada de adjetivos que quase afogaram o dia e esse texto, acrescento que foi um ótimo programa de televisão e reitero, sem a menor ironia, que o vestido é realmente esplêndido.
De ogros e etiqueta
Enquanto isso, cá deste lado do Atlântico, um par de noivos de Garibaldi, cidade do Rio Grande do Sul, optou por casar vestido como Shrek e Fiona, personagens do filme de animação da Dreamworks. Copiavam os ingleses Keith Green e Christine England que também se casaram felizes com suas bochechas verdes de ogros e com Burricos e Gatos de Botas na primeira fila da igreja do Reino de Nem Tão Tão Distante. No Brasil, defensores da estética tradicional dos casamentos, que alegam ser ela universal e imutável, ficaram mais que furiosos. “Os trajes não devem ser inspirados na imaginação e na fantasia” alegou um deles.
Sinceramente, não sei o que pensar a respeito, mas fico confuso com a restrição à imaginação e à fantasia quando penso no teor de realidade da estética adotada no casamento de Kate e William. Como mero espectador, entretanto, só me resta torcer para que o casamento de ogros renda outro bom programa na TV.
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