Do objeto de moda, à narrativa

Do objeto de moda, à narrativa

18 de abril de 2011 Crônicas, Moda 0

publicado no livro Moda em Zigue Zague – Interfaces e expansões, editora Estação das Letras, São Paulo

Nos anos 1950, vivia-se um momento agudo da implosão da arte como um meio específico, e se abria um campo largo para o envolvimento do espectador na experiência artística através das formas de arte participativa. Esse desmonte, iniciado no começo do século XX, com o dadaísmo, e tornado sistemático a partir daí, rompeu com a noção de suporte, com as hierarquias técnicas e históricas e com os rituais de exibição pública da arte, desmontados sob a saraivada de golpes dos movimentos de vanguarda.

Nos anos de 1960, Guy Debord teorizava com perspicácia, apunhalando o espetáculo com palavras “o sol que nunca morre no império da passividade moderna”¹ e Oiticica praticava, de fato, rodopiando Parangolés no morro da Mangueira. O que se buscava era uma experiência direta, eliminando as distâncias entre o performer e o público, entre o profissional e o amador, e entre o mundo da arte e a vida cotidiana. Sob esta perspectiva, se ampliou de tal forma os pontos de contato entre o produtor e o receptor, que estes passaram a se confundir e a trocar de papéis.

Esse pano de fundo que abriria brechas sem retorno na hierarquia dos meios de expressão nos anos 1960, somado com a chegada da juventude ao primeiro plano da cena sócio cultural, são condições fundamentais para introduzir o nosso assunto, que não é a arte, mas a moda.

Naquele momento em que tudo favorecia mudanças e o imediatismo era uma condição, a moda começava a se organizar como uma linguagem, um outro meio de expressão. O cenário era perfeito para que ela, dotada de agilidade incomum para processar informações e interessada em públicos variados, despontasse como um veículo eficiente para as idéias que não paravam de surgir, transformando-se em um grande fenômeno de massa nas décadas seguintes. Não deu outra.

A moda como meio de expressão

Se a roupa podia ser concebida e lida como um manifesto, para legitimar qualquer uma das muitas pretensões transformadoras de quem estivesse em torno dos vinte anos àquele tempo, não havia a menor possibilidade de se vestir de maneira convencional. A moda assumiu o papel de veículo para a expressão de novas idéias e diferenças e os indivíduos e grupos acreditaram nessa possibilidade, ainda que a indústria de massa seguisse adiante moralmente indiferente e apenas economicamente interessada. Um dos efeitos colaterais é que a moda se viu forçada a mudar de vez a forma pela qual concebia produtos e abordava seu público.

A infância da moda industrial que se dera no prêt-a-porter, quando os investidores precisaram minimizar os riscos com a novidade da roupa pronta, e fizeram isso incrementando as formas de dizer ao consumidor o que deveriam usar, entrou em uma nova fase aprofundando a noção de nichos de mercados, compartimentados segundo um conjunto de formas de agir e pensar. Vem daí a urgência em dotar o produto de referências para que ele estabeleça pontos de contato com o usuário.

O sistema de comunicação da moda soube aproveitar o novo momento e encorpou na razão inversa em que emagreciam as modelos encarregadas de divulgá-la, dando origem ao ciclo das tendências, este corpo de orientações destinado a alinhar os mercados e acelerar a produção, formatado como conteúdo de informação profissional.

A moda como informação

A moda tem seus repertórios particulares. Tem aquele que faz dela uma especialidade técnica: a costura, a modelagem, o corte e as matérias primas. Tem o das cadeias produtiva e comercial, que efetivamente a transformam em um objeto de mercado. Ela tem também seu vasto e ambicioso repertório de exibição. Neste trajeto, o que era só tecido, couro ou plástico, transforma-se em espetáculo, mercadoria, e objeto dotado de dimensão simbólica. De todos estes estados e outros que ela assume um dos mais influentes hoje é o de dado de informação.

Produtos de moda são objetos materiais que têm pressa e vida curta. O seu desenvolvimento físico pode ter partido de uma idéia, ou apenas simular esta condição como estratégia de divulgação comercial. Isto é viável por que a moda promove a migração de produtos de um contexto para outro, com adaptações, relançamentos ou cópias, reciclando os mesmos pontos de partida. Há um inegável percentual do novo atribuído aos objetos da moda que é dado apenas pela atualização ou tradução de um discurso aplicado a um objeto preexistente.

No passado, a moda só era uma idéia para o estudioso. E ele deveria ser destemido o suficiente para colocar a credibilidade a prêmio encarando-a como fenômeno digno de atenção. Hoje, o produto de moda embute desde a origem o aparato conceitual destinado à veiculação na mídia, que será repetido como narrativa pelo vendedor e incorporado como experiência pelo usuário.

Dentro de um pequeno prazo de validade, o produto de moda precisa aglutinar referências rapidamente. E ele é como um mata borrão, engolindo o que pode para chegar enriquecido no gargalo da comunicação. É preciso mais que o objeto para alimentar a voragem dos releases, campanhas publicitárias, editoriais de revistas, comentários em blogs e, por fim, amparar a experiência de quem o usa. Este cabedal discursivo, por razões óbvias, não descola a moda do objeto, como aconteceu na arte, mas é fato que, acrescida dele, ela nunca teve tanta autoridade. Falando sobre o minimalismo na arte, Georges Didi-Huberman diz que a potencialidade do movimento era “… inventar formas que soubessem renunciar às imagens e, de um modo perfeitamente claro, que fossem um obstáculo a todo processo de crença diante do objeto.”² No caso da moda, com o suporte do discurso, os objetos têm o papel inverso, que é de nos fazer acreditar neles cegamente e, como supremo paradoxo, apenas por algum tempo.

A informação de moda no Brasil

Para atender este quadro, os conteúdos textuais relativos à moda aumentaram em proporções grandiosas a partir dos anos 90 e hoje compõe um extrato imaterial gravitando em torno dela, que se tornou tão produto quanto ela mesma.

No Brasil, a informação de moda estruturou-se na adoção de um alinhamento sequencial com os lançamentos do hemisfério norte, em que o sul só entrava em campo no segundo tempo. Investigavam-se os estilos dominantes, e desmembrava-se o corpo sazonal da moda nas suas partes visíveis e ocultas.

Ainda hoje, para um percentual perto dos 100% dos profissionais que de alguma maneira ou outra produzem moda, inteirar-se dos lançamentos globais é necessário. Teoricamente quem tem informação está em condições de alinhar-se por estéticas dominantes e aperfeiçoar o desempenho comercial, e esta é uma estratégia adotada em diferentes intensidades pelo negócio que não se inclina pelo autoral.

No passado recente, enquanto a informação de cunho profissional chegava apenas a alguns grupos, este sistema funcionou bem, mas, o acesso democrático a ela invalidou seu caráter de exclusividade, minguando sua eficácia. Se todos os dados são iguais, como se chega ao diferente que a moda persegue?

O impasse, que desde sempre motivou autores a trabalhar à parte de um alinhamento global, pelo menos em termos absolutos, também forçou os conteúdos de informação destinados à produção em massa a se descolarem, movendo-se no rumo da diferenciação para garantir sua sobrevivência como produto. A informação deixou de ser exclusivamente um fluxo de dados retransmitidos e abriu-se como espaço para a imaginação de quem pensa, edita e comenta moda, e vende os resultados dessa prática.

Chegou-se então a outro ambiente, no qual a informação de moda, tratada como um produto, passou a ser ajustada por um emissor para se diferenciar daquela produzida por outro, afastando-se da fonte soberana que deveria alimentar todos eles, caso fosse mantido o padrão que vigorava até então. Entretanto, como em casos jurídicos, a partir de precedentes, apenas reproduzir dados já não garantia mais a sobrevivência do negócio montado em torno do sistema de informação. Era preciso reforçar as tintas e conjurar a imaginação, ricocheteando entre dados reais e imaginários para compor o que chamamos de quadros de inspiração. Estes enredos sugestivos, que têm a missão de fazer sombra a outros semelhantes que disputam a mesma fatia de atenção.

Conclusão

O que dá autenticidade aos conteúdos de informação da moda na atualidade não é mais a decupagem de um objeto físico – nesta cor, nesta forma, neste material – tomado como modelo, mas os valores abstratos e narrativos que se acoplam a ele.

Os conteúdos destinados a profissionais estão sujeitos a exigências que já não devem verossimilhança a uma fonte original, mas às regras de distinção com seus competidores. Eles estão subordinados às mesmas forças que atuam sobre os conteúdos endereçados ao público final e, também no caso deles, parte da autoridade migrou para o imaginário. Os mais valorizados são aqueles que veiculam o que outro não possa transmitir, não necessariamente porque detenham um conhecimento inédito, mas porque dominam melhor a forma de fazê-lo.

Mesmo a banda considerada objetiva da informação de moda apóia-se em grande parte na ponta mais especulativa da sociologia, da antropologia, da psicologia comportamental e da economia. Como o que determina a profundidade desses rasantes sobre essas e outras ciências é o tempo veloz e furioso da moda, ao fim vigoram os extratos ficcionais, os painéis fragmentados e sugestivos costurados por estatísticas, ditados pela brevidade das formas e pela inevitabilidade do fim eminente e planejado delas.

Há cerca de um século, o artista franco suíço Marcel Duchamp afirmou: Não meus amigos, isto não é um mictório, tampouco uma roda de bicicleta. Isto é um objeto de arte. Tempos depois o surrealista René Magrite adaptou e fez coro. Pintou um cachimbo e disse: Isto não é um cachimbo, é uma pintura. Em cada contexto e época estas negativas e afirmações tiveram um sentido, complementando-se uma à outra. A moda por sua vez, agora emenda: Isto não é uma camisa, um vestido, e este não é um sapato. Tudo isto, caro cliente, é só a materialização do seu desejo. Um estilo de vida.

1- Debord, Guy, A Sociedade do Espetáculo, versão para e-book
eBooksBrasil.com, Fonte Digital base. Digitalização da edição em PDF originária de www.geocities.com/projetoperiferia, 2003.

2- Didi-Huberman, Georges, O que Vemos o que nos Olha, Editora 34, 1998. Rio de Janeiro.

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