Vaga ecologia
Produzir coisas indiscriminadamente até ser afogado por elas é um fantasma contemporâneo. Sei que ninguém pensava no destino das coisas até bem recentemente, mas o assunto tem rondado minha cabeça e, nos últimos tempos, andei colecionando pensamentos a respeito. Três deles seguem abaixo.
O primeiro veio do trecho de um livro da Virgínia Woolf, no qual ela coloca o personagem para inventariar os objetos de uma imensa residência aristocrática. Várias páginas são dedicadas à descrição de castiçais, louças, colchas e vestidos empoeirados, recompondo pela permanência material o papel que eles tiveram na história do lugar. O que o impulso memorialista da autora oferece é a idéia de que aquele era um tempo em que os objetos duravam e podiam ser contados, mesmo se acumulados durante alguns séculos.
Em 2004 escrevi um livro sobre a história do sapato no Brasil e este fato me deu o segundo pensamento. Quando na pesquisa fazia a passagem do século XVIII para o XIX tive acesso a registros da entrada de produtos estrangeiros nos portos do país. Não sei explicar porque, mas estes arquivos estão em Tiradentes, Minas Gerais, ancorados a quase mil metros de altitude e a centenas de quilômetros do porto mais próximo. Neles a descrição é monótona: tantos quilos disso, tantos metros daquilo. Nem quando a mercadoria é humana o viés quantitativo muda. Guardei a imagem de navios indo e vindo pelo Atlântico e despejando escravos, vestidos e sapatos na costa brasileira.
O terceiro pensamento, e entre eles talvez o melhor condutor para a noção clássica do destino das coisas, veio de uma visita ao museu que fica na parte de cima da Catedral de São Marcos em Veneza. Estão lá uns esquifes de vidro fascinantes. Dentro deles, vestes eclesiásticas magnificamente preservadas no seu processo de decomposição, repousam nas suas caixas transparentes, com partes intactas ainda sugerindo os volumes da anatomia, e outras que se aquietaram de vez contra o fundo plano. A forma, a linha de contorno criada pela costura, os motivos decorativos e as cores ainda podem ser vistos, embora tenham virado pó.
O problema é que cumprir um ciclo até desaparecer é um privilégio raro. Substituímos as coisas antes que elas envelheçam e elas já não envelhecem como antes, embora algumas delas também não durem, no sentido funcional, como no passado. Muito menos se transformam poeticamente em pó. Não sei o que fazer a respeito. Na dúvida, me angustio com o destino do lixo, procuro manter comigo só os objetos que estão em uso e, por segurança, coleciono apenas pensamentos.
Nas imagens: Reddress. Vestido/instalação da artista coreana Aamu Song, apresentado este mês em Londres. Consumiu 550 ms de tecido, tem 20 ms de diâmetro e pode acomodar 238 pessoas. Foto maior: CARL COURT/AFP/Getty Images. Fotos menores: Kate Elliott. dezeen.com
Outra versão deste texto, com título de o Destino das coisas, foi publicado no Usefashion Journal de julho de 2011.
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