A moda é um lugar complicado
Foi um texto do jornalista Eduardo Viveiros que me apontou os movimentos de renovação da última SPFW, N47. Viveiros identificou as marcas estreantes, especulou sobre os motivos delas estarem lá e apontou os temas párias que agora ganhavam a chancela do evento. Li o texto dele com esperança, fantasiei moda promissora millenial e inclusiva, que encontra seu lugar em meio à adversidade ao redor. Mas a moda não é mesmo um lugar fácil. Logo vieram os ruídos, os cheiros velhos do escapismo e uma irreparável fatalidade que fraturou as expectativas nessa horapátriamãe hostil.
Direto do line-up
Acredito que não deva ser difícil para a Patricia Bonaldi, uma empresária audaciosa e que tem o mérito de movimentar a economia do setor, entender porquê é que o balneário idílico é um prato difícil de engolir quando direitos fundamentais desaparecem da mesa e a milícia, e não o fashion business, é que expande seu mercado. Ainda que você não enxergue a situação dessa forma, é melhor estar preparado para acolher outras visões, e elas vieram nas palavras do jornalista Pedro Diniz, da Folha de São Paulo. Confere lá o que ele tem a dizer sobre fantasia tropical para estrangeiro ver, neste momento dramático do país.
Como Viveiros e Diniz, há quem identifique a moda como chave de um tempo, e não penduricalho dele. Partilhando visão semelhante, Ronaldo Fraga se armou para a temporada com Portinari e crônicas do mundão agourento lá fora. Na passarela dispôs uma profusão de alegorias da militarização, do drama LGBT, da pauta indígena, da população negra e de outros males que nos afligem e afligiram o pintor de Brodosqui. Uma das imagens de Mariele Franco que ele ajuntou à lista, contudo, não liberou a onda de empatia que costuma liberar. Sobre um tênis de verão e com um alvo na testa, fez soar um alarme.
Moda é um lugar complicado e as ambiguidades do campo estão sempre no ponto de eclodir. Um deslize, que seja, torna possível invocar a maldição da leviandade e do oportunismo. João Pimenta estilizou a cara da tortura, enfiou cabeças em sacos plásticos, transformou a imagem do batom em violência e styling em coleção de rostos apavorantes. O Brasil é outro lugar complicado e o desfile-denúncia encontrou caminho até os corações e mentes da imprensa e do público. Ninguém que eu tenha visto nas redes sociais bateu no desfile do João como bateram no tênis do Ronaldo. Styling não é produto, o tênis é. Procedimentos duchampianos de deslocamento de campo nem sempre dão certo quando o campo de destino não é o da arte. O fato do tênis não ter transcendido sua condição original ilustra o que estou dizendo.
Mas algo duro e pungente ainda estava para acontecer. No desfile da marca Också, a imagem inesperada era de uma pessoa caída ao chão. O modelo — o profissional, o filho, o irmão, o namorado de alguém — convulsionava sobre a passarela sem que os milhares de olhos grudados nele entendessem de imediato o que se passava. A indecisão pode ser uma armadilha fatal, mas já se provou que não foi ela o que contribuiu para a morte de Tales Cotta. Nem o sistema da moda será o vilão do anti espetáculo; e nem serão aqueles segundos desacertados que nos serão duros como a eternidade. É a desconcertante normalidade profissional que se se seguiu após morte do Tales, o modelo mineiro de 26 anos, que irá nos assombrar.
“Não era para ninguém estar aqui, certo?”, gritou o rapper Rico Dalasam após a confirmação do óbito. O público aplaudia ou fotografava. Equipes técnicas, e modelos do casting seguiam em frente performando o pão de cada dia.
O mundo é um lugar complicado.
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