A Couture e o instinto de sobrevivência na primavera 2018

A Couture e o instinto de sobrevivência na primavera 2018

8 de fevereiro de 2018 Moda 1

Valentino Primvavera-verão Alta-costura 2018.

Dizem que uma presa pressente o momento exato em que vai ser abatida. Tal capacidade concede à ela espaço de tempo suficiente para engendrar um plano de fuga — instinto, é o que chamam. Para a camaleônica alta-costura, o instinto é manipulado pelo fator expectativa. Surpresa é sobrevivência. E se a temporada anterior foi pontuada por tempos cinzentos e clima mórbido, nessa, a nostalgia é quem controla o botão meteorológico. A pergunta que fica é: por quanto tempo mais o gene animal e instintivo da alta-costura vai garantir sua sobrevivência?

De fato, as coisas na moda estão mudando depressa. A moda por si só, não tanto. Mas o que dá estrutura à ela, sim. A sensação que se tem é que não há lugar mais para tradições.

A passarela é um bom exemplo a se tomar. O formato célebre de apresentação que ajudou a construir o mito por trás de tudo parece se fossilizar mais a cada temporada. Assim como as semanas de moda que, pouco a pouco, ensaiam se desmantelar após nova coleção, com estilistas migrando daqui pra lá ou criando outras formas de divulgação. O cenário que se conhece está em alerta vermelho.

Embora esse alerta possa soar tendencioso, é um contrassenso invalidar a ideia de que a alta-costura não está sob a lupa de atualização de interesses que passou a regulamentar todo o sistema. Será que é chegada a hora de rever as normas minuciosas de seu nascimento? E logo ela que sobreviveu a golpes e disputas, inúmeras crises econômicas severas e até mesmo às investidas de uma despótica Alemanha nazista? Veremos.

Porém, antes que esse texto seja avaliado como fúnebre ou confundido com uma possível declaração de agradecimento póstumo pelos serviços prestados pela Couture, eu explico. Ele nasceu, na realidade, para evidenciar as diligências dessa instituição com sua própria espécie e como muitos sinais do caráter cerimonioso dela acabaram por se tornar verdadeiros planos de fuga.

Começando pela Valentino. Quando a primeira modelo cruzou a passarela da maison italiana trazendo um fascinator de plumas esvoaçantes locomovendo-se pelo salão como uma àgua-viva e trajando um casacão oversize em tons ácidos, soubemos na hora que aquela era uma coleção sobre nostalgia. Pierpaolo Piccioli declarou que a coleção era sobre um futuro elaborado a partir de um passado — o passado da alta-costura, com suas suntuosas boas maneiras de anfitriã em rituais e processos cerimoniais de outrora. Shapes volumosos, cores vibrantes contrabalanceadas por tons arenosos e diluídos, laçarotes e florais estratégicos, luvas de cetim e rufos discretos. A mulher da Valentino não é adepta dos vestidos bordados de princesa, está mais para uma Holly Golightly vestindo alta-costura nos anos 80.

A Dior, por sua vez, resolveu recuperar da alta-costura o antigo fascínio pelo universo dos bailes e todo o entorno que conferia a ele uma natureza quase mística. Maria Grazia Chiuri tem demonstrado operar em duas vias quando se trata de busca por inspiração: o supersticiosismo de Christian Dior e o empenho em dar relevo a vozes de artistas femininas esquecidas pela história. Não foi à toa que o cenário construído para a apresentação suscitava referências à artista surrealista argentina Leonor Fini. Com gaiolas, orelhas e olhos suspensos, sustentado por um piso xadrez criando ilusão ótica, Maria trouxe à passarela um baile de máscaras flutuante amparado pelo preto e branco como ode ao subconsciente.

Resquícios de baile também pousaram na passarela da Schiaparelli. Bertrand Guyon organizou um exército de mulheres cosmopolitas, em vestes étnicas ora com sutileza de um vestido de festa midi cinquentista, ora estampadas com motivos pagãos ou pictográficos de civilizações antigas. Além disso, a parceria com a Swarovski possibilitou a criação de um vestido confeccionado apenas por cristas em uma malha finíssima, como se a modelo flutuasse pelo salão vestindo uma nuvem etérea.

A Viktor & Rolf decidiu produzir uma coleção inteira apenas com um material: o cetim duchese. A ideia de reiterar um processo do savoir-faire com apenas uma matéria-prima e espichar até isso se tornar algo novo é sinônimo da inventividade da Couture. “Limitações estimulam a criatividade”, conclui a dupla de designers.

Para finalizar, temos a Chanel, em uma Belle Époque pavimentada bem ali no Grand Palais. Lagerfeld que já foi autor de cenários absurdos de se imaginar, essa temporada abriu mão do excesso para armar um singelo jardim de flores frescas com um característico chafariz parisiense ao centro. A coleção segue em tons dóceis orientada por uma composição que intercala plumas, camadas transparentes, cintura marcada por laçarotes e brilhos ardilmente posicionados. E bem, a julgar pela noiva que encerrou o desfile vestindo calça, colete e uma cauda de plumas quase escorregando na referência de uma Mary Poppins matrimonial, podemos dizer que sim: a Alta-costura, renascida na Belle Époque, limpou de vez o seu nome — pelo menos nessa temporada — da lista de espécime em extinção.

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1 Comment

  1. luiz e b da motta

    9 de fevereiro de 2018
    Responder

    Otimo texto Lucas

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