Barkley

Barkley

18 de janeiro de 2010 Crônicas, Moda, No Radar 0

Dois trabalhadores africanos envolvidos na construção de um novo estádio ilustram a matéria da revista semanal. Na televisão, a dona de casa abre um largo sorriso para as lentes da câmera, enquanto o locutor da rede anuncia um aumento de 60% na capacidade hoteleira nas cidades onde se realizarão os jogos da copa do mundo.

Imagens como essas da África atual toda hora cruzam nosso campo de visão. Nada de batuque, colorido forte e pé no chão. É uma gente urbana, universal, imersa no cotidiano. A copa é na África do Sul, onde vivem muitos brancos, mas, aqui como lá, o passado torto e cruel ainda cobra seu preço e, entre as classes baixas trabalhadoras é que está o maior contingente da população negra. Nas revistas e tvs de hoje, o negro documentado no ambiente das grandes cidades aparece assim, sem as tintas fortes que cercavam sua presença na mídia em décadas passadas, e que povoaram nosso imaginário com um estilo de longa linhagem, adotado por James Brown, reverberado em Prince e Michael Jackson e exacerbado, mais uma vez, nos manos do rap e do hip-hop milionários da MTV. Existem as formas como a mídia branca representa o negro, a forma como ele é mantido fora dela, e a forma como o negro se representa. E existem artistas raros como o pintor americano Barkley L. Hendricks que compreende e atravessa todas elas.

Hendricks registra em pinturas esta nota constante na cultura negra urbana, a singularidade com que cada um se veste, e impõe estas imagens ao grande circuito cultural. Os retratos são em tamanho natural e as pessoas que ele representa são do seu círculo de convivência, em New London, Connecticut, nos Estados Unidos, onde ele vive e leciona arte.

Ao focar nossa atenção nestes personagens, ele expõe as singularidades e os clichês destas autorepresentações de estilo acentuado, encontra toda a graça que existe nelas e as dimensiona contra um plano bem mais complexo do que sugerem estes vazios de fundo infinito de estúdio de fotografia que ele adota.

Para quem é profissional da moda, o que primeiro se enxerga é o colorido forte, a silhueta bem construída e o irresistível apelo fashion que emana destas figuras e contamina nossa percepção. Aos poucos, emergem outras referências. Como toda a arte contemporânea, nem mesmo a pintura realista do artista foge à necessidade de se ler a respeito dela. O artista captura não apenas a forma como seus modelos se vestem, mas também o humor que cerca estas figuras representativas da rica e turbulenta cena da cultura negra, dos anos 1960 e 1970 na América.

A mulher de jaqueta jeans, saia-calça vermelha e cigarro na mão, nos olha do alto de uma pose comum. Somos atraídos pela perfeita relação de cores e proporções, pelo estilo que dilui elementos esportivos, e o conjunto que corteja as imagens de revistas de moda. Dura pouco esta ilusão. Algo de idiossincrático anula esta possibilidade e não há mais dúvidas de que estamos diante de um retrato de uma determinada pessoa, e não de uma imagem destinada à generalização.

O trabalho intitulado Sir Charler, Alias Willie Harris, multiplica por três a elegância deste traficante de drogas e abre pontos de vista sobre a impecável construção de imagem pessoal que o retratado elaborou para o seu papel social.

Georges Jules Taylor, estudante, homossexual e intelectual que Hendricks retrataria outras vezes. Todos estes trabalhos são da década de 1970 e o registro de época é outra camada coberta com brilhantismo pela pintura.

A maior delas, Blood (Sangue), é um retrato de Donald Formey, provavelmente um músico, e o esquema de cor que aproxima a do terno xadrez com a violenta tonalidade do fundo, dá unidade ao conjunto, enquanto, simultaneamente, abre uma frente de conflito com a atitude corporal relaxada do modelo.

A aproximação do trabalho deste artista pelo viés da moda é uma leitura possível e prevista por ele, mas esta é uma obra que se lê em camadas, umas sobre as outras e cada vez mais fundas. Educado que é em História da Arte, ele também coloca seus retratados em diálogo com a pintura do passado, evocando composições renascentistas. Como escreveu o historiador de arte Huey Copeland no texto sobre o artista na edição de abril de 2009 da Artforum: “para Hendricks a forma não é modelada na abstração de uma imagem pictórica, mas em um campo atravessado por assuntos da condição negra.”

O pintor nasceu em 1945 na Filadélfia. Em 2008, ganhou sua primeira grande retrospectiva, curada pelo Trevor Schoonmaker e intitulada Birth of the Cool. A mostra começou a cruzar o país a partir do Nasher Museum of Art da Duke University na Carolina do Norte, depois foi para o Studio Museum no Harlem, em Nova York, passou pelo Santa Monica Museum of Art, na Califórnia, e vai aportar, em 2010, no Contemporary Arts Museum de Houston, finalizando a itinerância.

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eduardo:

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