Benesse Art Site | Naoshima | Japão
Naoshima | mínimos máximos
Chichu Art Museum
Photo:FUJITSUKA Mitsumasa
A viagem de trem bala a essa ilha encantada pelo desígnio do arquiteto autodidata era o ponto alto da minha expectativa, nesse país incrível que é o Japão. Naoshima é uma ilha localizada no distrito de Kagawa. Benesse Art Site Naoshima é o nome do complexo de atividades de arte realizados pela Benesse Holdings, Inc. e Fukutake Foundation, nas ilhas de Naoshima, Teshima e Inujima. De Kyoto, partimos de trem bala (2h:30m) até Okayama e depois tomamos um barco, onde já é possível apreciar as belezas do Mar Interior, nome para lá de sugestivo. Ando Tadao, chamado assim pelos locais (para nós Tadao Ando), contratado pelo abastado colecionador de arte Soichiro Fukutake, em 1992, idealizou a transformação radical desse lugar, então abandonado e em degradação. E juntos fizeram acontecer. Hoje o complexo se estende por mais 2 ilhas próximas. Mas, é em Naoshima que se concentram as maravilhas arquitetônicas de Ando, proporcionando a mescla perfeita entre arte e natureza. O propósito inicial de reinvenção da forma de contemplação se concretiza, literalmente. Ao desembarcarmos já avistamos um sinal do que nos aguardava, uma das imensas abóboras da artista Yayoi Kusama, instalada no porto, recebe os visitantes e tornou-se uma espécie de marca local.
Yayoi Kusama"Pumpkin"
Photo: Shigeo Anzai
Fomos direta e primeiramente ao complexo no pequeno povoado/porto de Honmura, onde está o museu Ando e outras diversas instalações em casas locais, adaptadas por artistas, o “Art House Project”. O museu, cuja fachada o arquiteto optou por manter como uma casa local, reserva uma grata surpresa: seu interior é totalmente revestido com a matéria primordial de sua obra, o concreto, suas texturas, as marcas peculiares das perfurações estruturais expostas e do tratamento das aberturas e da luminosidade como elemento primordial. Adentrar suas obras, vivenciar os detalhes mínimos e sua máxima de luzes e sombras, sempre será impactante. Nesse caso, ainda com a chance de entender o processo da transformação da ilha e mergulhar nas fases da luz do dia que impregnam a icônica “Igreja da Luz”, de 1989, em Osaka. E ainda respirar os croquis. A simplicidade dos gestos conceptivos, em cadernos simples, pequenos pedaços de papel e guardanapos, emociona e muito. Ainda mais se lembrarmos que tudo resulta de uma formação autodidata.
ANDO MUSEUM
Photo:Yoshihiro Asada
De lá partimos para a parte leste da ilha, grande extensão onde foi implantado o complexo do Benesse Art Site. Primeira parada: Benesse House Museum. Curiosa é a permissão ao hóspede que tem o prazer de hospedar ali, de poder a qualquer hora do dia ou da noite, inclusive nas madrugadas, ir de pijamas apreciar obras de Alberto Giacometti, Jasper Johns, Jackson Pollock, Richard Long, David Hockney, Yves Klein. Além disso, trabalhos selecionados de artistas como Joseph Albers, Sol LeWitt e Christo estão nos aposentos abertos para grandes terraços, com vista para as ilhas e praias. Não nos foi permitido conhecer o anexo chamado “Oval”, cujo desenho arquitetônico impressiona por ser completamente subterrâneo, com pátio interno aberto para a superfície, na forma geométrica que lhe dá o nome e reservar um imenso espelho d’água interno. Mas, visitamos o museu, que se configura em torno de um espaço circular com uma rampa que articula os quatro andares, levando ao nível mais baixo, onde fica a obra de Bruce Nauman “Live and Die”, feita em néon com palavras que evocam vida e morte.
Benesse House Museum
Photo: Tadashi Ikeda
A galeria principal é aberta para um pátio com a escultura do japonês Kan Yasuda, “The Secret of the Sky”, duas enormes pedras de mármore lapidadas meticulosamente, amaciadas como almofadas gigantes, convidando ao desfrute.
De lá partimos para o Chichu Art Museum. A palavra “chichu” em japonês quer dizer dentro da terra. E é assim que quase tudo acontece por lá. A grande maioria das edificações está enterrada e apenas indícios calculados geometricamente insinuam-se na superfície. O Chichu é formado basicamente por galerias estonteantes dedicadas a Claude Monet, James Turrell e Walter de Maria. O edifício em sua totalidade pode ser chamado de um grande trabalho de “site-specific”. Apesar de seu posicionamento, ele recebe uma abundância de luz natural, alterando a aparência das obras de arte e o ambiente do espaço em si, com o passar dos dias e das estações. O que o antecede é tanto uma homenagem como uma preparação: um caminho ajardinado ao estilo Giverny, repleto de cores, aromas e texturas. Lindo, romântico e doce.
Chichu Garden
Photo:Takeo Shimizu
E, de repente, um instigante corredor escuro leva ao primeiro pátio a céu aberto, com um jardim de bambus. Ambientes preenchidos, apenas e muito, pela arquitetura limpa. Pisos suavemente inclinados, paredes idem. Surpresas essenciais.
Chichu Art Museum
Photo:Mitsuo Matsuoka
Uma pausa para um lanche, onde saboreamos o melhor salmão defumado do mundo, com direito a desfrute do mobiliário do arquiteto e das vistas, claro. Ali são oferecidas cestas e almofadas de palha confortáveis, para os que preferem desfrutar a pausa ao ar livre.
Outra gentil rampa, mais uma vez, nos conduz a um outro pátio triangular com chão de pedras brancas, um jardim árido contornado por paredes de concreto rasgadas por incríveis fendas contínuas, de extremo a extremo, que desafiam, aparentemente, a gravidade (para quem não sabe do recurso arquitetônico das vigas invertidas) e transformam o ato de andar num ato de contemplação único, sequenciado por claros e escuros magníficos.
Chichu Art Museum
Photo:Mitsuo Matsuoka
A seguir as impressões ficam à mercê do “Time, Timeless, No Time”, obra de Walter de Maria. Em clima templário, a escadaria leva à enorme esfera de granito. As peças de madeira forradas de ouro nas laterais e a trilha sonora contribuem com a atmosfera sagrada. Tanto a arquitetura quanto a obra datam do ano 2004. A integração é perfeita, convidando nossas sensibilidades a adentrar a obra em silêncio e em ação lenta, absorvendo tudo.
Walter De Maria
‘Time/Timeless/No Time’ 2004
Photo:Michael Kellough
Mas o melhor ainda estava por vir. Ah, Monsieur Monet, aí descubro que suas obras ainda não haviam arrancado de mim todas as lágrimas possíveis. Para entrar na imensa sala branca, especial para receber as cinco “Water Lilies”, retiramos os sapatos, como de praxe, calçamos pantufas leves e alvas, de acordo total com o piso em mosaico de pequenos cubinhos de mármore, amaciados pela lapidação minuciosa, proporcionando um prazer surpreendente no andar. Inenarrável. Poderoso. A sensação impressiva fica ainda mais estimulada, por todos poros e meridianos vitais. Giverny potencializa-se e é como se as telas daquele jardim ainda pudessem ser mais e mais, constituindo uma nova experiência sensorial, nessa perfeita instalação.
Claude Monet Space
Photo:Naoya Hatakeyama
Na década de 1970, James Turrell iniciou a série de “Skyspaces”, espaços fechados abertos para o céu através de abertura retangular na cobertura. Em Naoshima, a obra “Open Sky” é um espaço rodeado por bancos de pedra, com a abertura emoldurando o céu e proporcionando um incrível jogo de luzes e formas em mutação constante. Foi como um preâmbulo para suas outras 2 obras, permanentemente instaladas ali, por Ando.
James Turrell ‘Open Sky’ 2004
Photo:FUJITSUKA Mitsumasa
Depois era a vez de “Open Field”. O convite, apresentado solenemente pela delicada e jovem japonesa, era adentrar através de uma escada no que, à primeira vista, parecia ser uma tela bidimensional. Na verdade, um mergulho no amplo azul. Ao sair, como se ainda fosse possível sentir mais e mais, fomos tomados pelo contraste intenso dessa impregnação com sua complementar laranja, aplicada em todos os sentidos. De tirar qualquer fôlego.
James Turrell ‘Open Field ’2000
Photo:FUJITSUKA Mitsumasa
Por fim, “Afrum – Pale Blue”, uma forma no ar, mas como se tivesse massa e peso, enquanto na realidade é pura luz. Leveza necessária.
James Turrell ‘Afrum, Pale Blue’ 1968
Photo:FUJITSUKA Mitsumasa
E partimos para o mais recente pavilhão da ilha. É possível se deslocar pelo complexo através de confortável micro ônibus, mas optamos por andar, molhar os pés no mar, digerir. E nos prepararmos para continuar. Esse pavilhão resulta da colaboração entre o artista Lee Ufan e do arquiteto Ando. Não há limites entre o interior e o exterior. Também de estrutura subterrânea, abriga pinturas e esculturas de Lee abrangendo o período da década de 1970 até os dias atuais, que ressoam com o desenho do arquiteto, perpetuando a sensação de silêncio e dinamismo. Posicionado em isolamento em um vale cercado por montanhas e mar, o espaço oferece uma harmonia rara entre a natureza, arquitetura e arte, intensamente reflexiva. As obras de Lee Ufan são simples, cores neutras, cinzas, brancos, metais, pedras. Protagonizam-se os materiais. A atmosfera é tranquila. A adequação ao espaço é perfeita. Em “Shadow Room”, ele combina uma grande pedra com imagens de água projetadas sobre a superfície onde a sombra da rocha acontece. Os valores arquitetônicos, mais uma vez, fazem com o quê pode parecer uma ideia simplória, algo intrigante e especial. Reafirma-se como o lugar expositivo agrega valores ao trabalho artístico. A arquitetura de Ando evoca o silêncio necessário.
Lee Ufan Museum
Photo:Tadasu Yamamoto
Um muro impecável de concreto delineador e a escadaria em escala monumental, indicam e direcionam a mais uma obra de Walter de Maria: “Seen / Unseen Know / Unknown”: duas esferas de granito enormes, oculares e reflexivas.
Mais uma abóbora de Yayoi Kusama, outras obras nas areias das praias, nos caminhos e nos “quase” vazios fundamentais. O percurso submergido na montanha nos remete a um organismo contínuo dentro da terra. Mais japonês impossível. Contrapontos. Tudo bem próprio do minimalismo, não há privilégios à quantidade, mas sim à qualidade. Os espaços exteriores são vastos, limpos e entremeados, vez ou outra, por diversas outras obras, no cenário estonteante.
– Olha, um Dan Graham ali! Exclamei, feito criança, a certa altura.
Depois de mais algumas surpresas dessa ordem no percurso, exaustos e encantados, era tempo de ir, enquanto o desejo era de ficar mais e mais.
Sim, comparam esse lugar ao Inhotim, Minas Gerais, Brasil. Sim, algumas semelhanças existem, no que diz respeito aos impulsos iniciais e as ações em prol de condições dignas para a perpetuação da complexidade da arte contemporânea. Não pode haver juízo de menor ou maior valor.
Naoshima é única, assim como Inhotim o é.
E assim foi.
Muitas impressões não tenho como compartilhar na totalidade. Apenas ficam. Vivenciamos e sentimos a essência nipônica, a atmosfera do silêncio, da limpeza, da delicadeza, da gentileza, que provavelmente, tem raízes na filosofia budista que predomina no país. Dá para fazer um paralelo, também, com a iminência constante dos fenômenos geológicos, como terremotos (vivemos um na escala 5.2, em Tokyo): sim, o presente é um presente. E a reverência, costume local normal, já diz muito.
No mais, fica a importância do silêncio e dos mínimos máximos.
marcia david
literatura | artes plásticas | artes gráficas | arquitetura
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