Linhagens da moda: fundadores vs. sucessores
Karl Lagerlfeld costuma dizer que Mademoiselle Chanel teria odiado o que ele fez com a Maison. Isso porque as questões ideológicas de ambos são opostas: de um lado, em 1983, Lagerfeld era um estilista recém contratado com um navio afundando nas mãos e que adotou um popismo descomedido para salvar os negócios; do outro, o legado de uma fundadora blasé com forte aversão a padrões e provedora de um estilo transgressor (que, ironicamente, acabou se tornando amplamente copiado). A moda não está apenas recheada de histórias como essas, de fundadores e sucessores, mas revestida por uma cobertura agridoce de êxitos e fracassos que deram, a sua maneira, continuidade ao savoir-faire do ofício.
Se Freddie Mercury cantava que o show precisa continuar, a moda — adepta notória do espetáculo — também precisa encontrar vias de seguir em frente. Quando há casos de morte de um fundador ou situações que impeçam que o diretor criativo a frente da marca continue seu trabalho, a lógica é substituí-lo por outro. Tal estratégia só é possível mesmo no sistema da moda. Em outras áreas, como nas artes ou na literatura, a obra de um individuo permanece inteiramente submetida a ele.
O que acontece é que a marca acaba se tornando uma entidade independente daquele que a idealizou. Torna-se uma instituição que demanda ser alimentada por outras vozes que a façam continuar operando. Essas outras vozes, no entanto, por mais que procurem se ajustar ao idioma da casa, trazem outros sotaques e por aí a moda vai se edificando como uma Torre de Babel.
Nesse processo de construção de identidade de marca, em algum ponto, pode se chegar a indagações como: “Ora, isso não se parece mais com o que era feito. Será que o novo autor perdeu a mão?” A resposta pode ser sim e não.
Quando Sarah Burton assumiu a direção criativa da Alexander McQueen após a morte do fundador, logo declarou que os dias de teatralidade na marca haviam chegado ao fim. O mesmo aconteceu com a entrada de David Koma na Mugler — o estilista revolucionou a silhueta característica da casa, abstraiu o espírito oitentista e alterou até mesmo a grafia do logo.
Alguns outros exemplos são ainda mais radicais: ao substituir John Galliano na Dior, Raf Simons colocou na passarela peças que romperam bruscamente com a estética dramática do seu antecessor. Se o clássico tailleur Bar na era Galliano vinha acompanhado por camadas e mais camadas de tules em flores exóticas e arranjos de cabeça estratosféricos, pelas mãos de Simons ele tornou-se reto, sóbrio e perfeitamente alinhado.
Dessa lista de transformações e choques de identidade, não pode ficar de fora a Gucci. Nos tempos de Tom Ford, a marca reproduziu uma mulher sedutora e glamourizada, sem freios para abordar o fator sexo. Esta orientação foi seguida com menor intensidade por Frida Giannini — que até tentou regular a temperatura vulcânica de Ford. Na nova fase, a Gucci de Alessandro Michele abriu-se para um outro mundo, com toques de naturalismo e adesão ao vintage extremo. De repente o perfil de público da marca tornou-se algo entre a mescla de geek retro-futurista com amantes do cinema independente.
Não é sempre que se espera que um criador, ao assumir uma casa de moda, passe inteiramente a limpo a assinatura do antigo autor. Espera-se que a nova força criativa que ele traga exerça a vontade de rubricar uma visão distinta sem que, contudo, deixe que o espírito da marca decline. É assim que caminha a moda. Em passos ríspidos e bem dados. Afinal, o show precisa continuar — e atrasos não são permitidos.
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