O DESFILE TRANS DE RONALDO FRAGA E A CRÍTICA DE MODA
Recentemente, Ronaldo Fraga fez um desfile de grande repercussão unindo posicionamento sociopolítico a um formato bem estruturado. O tema, um manifesto contra a violência a que são submetidas as transexuais e transgêneras, imediatamente se sobrepôs à forma ganhando largo espaço na mídia e muitos adjetivos. Que fique registrado desde já: acho todos eles merecidos.
Neste texto, no entanto, vou economizar nos adjetivos e me abster de dar relevo aos sentidos imediatos que o desfile veiculou. O que vai me interessar é a maneira como Ronaldo estruturou suas mensagens, como ele as formatou até que atingissem a potência desejada.
Deixo de lado, inclusive, a condição de manifesto pelo fim da violência contra transexuais do desfile, não porque esteja subestimando o assunto, estou apenas fazendo uma escolha deliberada. Como se trata de um tema mobilizador e oportuno transmitido em mensagens claras, ele foi generosamente abordado em outros artigos liberando-me para acessar o desfile por outros lados.
Observar como evoluem nossos criadores de moda, e como eles estruturam suas linguagens, é algo que considero necessário – eu diria urgente – e isto tem pouco a ver com gostar, achar bonito ou se emocionar com aquilo que eles nos apresentam. Isto se concordarmos que qualificar a apreciação crítica seja importante.
Este é o momento certo para quem considera um desperdício uma abordagem formal de matéria tão significativa e emocional deixar de lado esta leitura. Para aqueles que acreditam que o que se esconde sobre a comoção é o que a tornou possível – e tem tesão por essa camada – vamos em frente para ver no que dá. É apenas um sobrevoo, sem pretensão de esgotar a conversa.
O jogo das expectativas
Ronaldo é habilidoso na escolha de temas empáticos, em regê-los não como uma edição de roupas, como é comum de se fazer, e sim em narrativas cuja curva dramática tem afinidade com as narrativas empregadas nas formas de arte que contam histórias. No caso deste desfile, especialmente, com o teatro.
A estrutura de um desfile de moda também é narrativa e teatral. No passado – e ainda em alguns casos – convergia para a entrada da noiva, personagem feminino da trama que tinha seu destino moldado por rituais da religião católica, virgindade e outras forças da tradição.
Trazer à memória a construção conservadora do desfile é importante para falar do que foi este do Fraga. Tanto pelo que ele tem em comum quanto pelo que se distancia dela. Ao final do desfile dele, não é a noiva que vive seu momento apoteótico, são todas as integrantes do casting que se “acasalam” em uma dança de sugestão erótica.
Até este momento, digamos assim, mais picante, a marcação do desfile corre clássica e a performance, sóbria. Estamos em alguma década do entre guerras, o lugar provavelmente é um cabaré, mas todos se comportam de forma discreta. Sob esta camada apaziguadora é que ele mantém o dado bélico de transgressão: todas as modelos são mulheres trans. No palco/passarela elas interpretam a si mesmas e o que a sua existência representa, seja no contexto de uma fashion week ou fora dele. Estão ali para desenhar personagem único, avatar de todos os outros homens e mulheres trans que existam.
Dosando forças opostas, tradição e transgressão, contemporaneidade e passado, realidade e encenação, e jogando com as expectativas e disposições (negativas ou positivas) acionadas na mente do expectador, Fraga constrói o desfile em camadas superpostas para amparar, elucidar e dar potência umas às outras.
Outra expectativa, a de que transexuais sejam caricatas e adotem uma linha de interpretação excessiva também é frustrada. O desfile é encenado em gestos contidos e caminhar pausado dentro de marcação espacial clássica. (Mas são mulheres tão bonitas!” Foi o que ouvi uma senhora atônita comentar dias atrás.)
Há varias estratégias em jogo. Há uma subversão que incorpora um ato sensível e politico, representada pela inclusão das mulheres trans. Existe o uso do potencial midiático do tema naquele exato momento e lugar. E há uma sujeição deliberada quanto a um formato convencional de apresentação.
Estamos diante de uma inversão sequencial de expectativas. Ronaldo apropria-se da principal delas, o deslocamento de gêneros, e o apresenta em formato acessível, mas em intensidade radical: todo um casting é anunciado como trans. Daqui por diante, legitimado pela força do espetáculo, pelo interesse do público no tema, e pelo aparato de mídia envolvido em uma semana de moda, levar a questão de transexuais à passarela será por mérito um feito dele. Ainda que outros já tenham abordado o assunto.
O lugar do desfile
“O teatro é uma arma. Uma arma muito eficiente.” Disse Augusto Boal. E foi este “lugar” que “é uma arma” e onde verdade e mentira trocam de papéis todo o tempo que o Ronaldo escolheu para falar de transexualidade. Escolha que obviamente não foi apenas arquitetônica.
O Teatro São Pedro, recém-reformado e inaugurado no bairro Santa Cecília, em São Paulo, acrescenta outra camada simbólica ao desfile com seu palco italiano, grandes cortinas vermelhas, balcões dependurados nas paredes laterais e sua condição de … teatro! As modelos entravam pela esquerda, caminhavam até o centro, viravam-se de frente para o público e avançavam na direção dele. Em seguida tomavam à direita, desciam pela escada lateral usando o corredor para contornar o primeiro bloco de assentos na plateia e retornavam ao palco pela esquerda desaparecendo nas coxias. Romper aquela parede imaginária na frente do palco e misturar-se ao público foi recurso mais que adequado no caso.
É quando chegamos às roupas. Mas a que roupas? Neste desfile Ronaldo abriu mão delas (no sentido que roupas tradicionalmente tem em desfiles). O tema lhe deu oportunidade para isso, para aprofundar o distanciamento da ideia de produto e reafirmar a predileção pelas ideias e pela encenação. Se as roupas-produto não estão lá, é porque estão de outra forma, a serviço da narrativa e como figurinos.
Neste ponto ele adiciona outra superposição usando o tromp-l’oeil para simular elementos da costura real sobre uma modelagem padrão. Parte dos babados, pregas, barras e camadas são simulações, pinturas sobre tecido e nada mais. Aqui, sem que o recurso seja original, ele está perfeitamente empregado. O modelo base, um vestido, acalma os excessos sugestionados pelo condicionamento aos estereótipos. Desde os atribuídos às “roupas de passarela” até os associados a pessoas que carregam o prefixo trans atrelado à sua identidade de gênero.
Falei em originalidade e explico. Ela é desejável, mas não é regra para se fazer moda. No caso deste desfile torna-se importante identificar o que não é original para entender como Ronaldo articula referências e se apropria delas encenando ideias. Este desfile é mais inventivo na sua arquitetura que no tema. Ainda que contraditoriamente os elementos estruturais sejam antigos e o tema ainda seja uma batata quente. (E um desafio considerável nas mãos de qualquer encenador menos talentoso.)
Sem querer desvendar a mágica ou anular seus efeitos – mas sem pedir licença a quem acha desnecessária ou chata a necessidade de esmiuçar como as linguagens e formatos de exibição de moda são construídos – fico com outra linha de convicção: na moda a curiosidade que precisa desmontar as estratégias de exibição e os objetos, assim como o senso crítico, são tão importantes quanto a receptividade aos temas sensíveis.
Em se tratando de qualquer tipo de linguagem, passado o momento de vulnerabilidade cardíaca, emoções por si só nunca sustentam envolvimentos de longo prazo. Vale a pena considerar que talvez seja o jogo de inversões de expectativas, e a superposição de camadas de significados, tão bem empregados – e por vezes ecoando recursos de metalinguagem – que façam deste desfile sobre mulheres trans um desfile particular.
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