PÓ – UM ANO SEM BOWIE
Hoje, faz um ano que Bowie nos deixou. Na data, sem saber como processar o acontecido escrevi este conto que publico hoje aqui. Ele está no livro Metamorfoses que reúne diversos contos que partem da primeira frase do clássico de Kafka.
PÓ
Quando certa manhã acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado numa estrela. Certamente não era a primeira vez que se metamorfoseava e provavelmente não seria a última.
Sua primeira grande metamorfose havia sido ainda quando jovem, aos 22 anos. Certa manhã acordou astronauta. Perdido no espaço, assustado. Parecia que estava sonhando, mas a verdade é que flutuava pelos céus. A distância, via o planeta Terra, mas não conseguia aproximar-se dele. Pensou que flutuaria para sempre, até que não flutuou mais. Caiu em direção ao planeta. Era um alienígena. Nesta forma, viveu por alguns anos, tornou-se conhecido, alguns diriam até famoso. Estava gostando desta transformação, era melhor que a anterior e pensou que poderia viver assim para sempre. Mas esta fase também pouco durou. Logo, metamorfoseou-se em outra coisa, depois em outra e assim por muitos anos. Foram tantas as vezes que aprendeu a gostar das metamorfoses.
Ao identificar as partes da estrela, duas inferiores, duas superiores e uma ponta no topo logo chamou por sua esposa, que dormia profundamente ao seu lado.
– Eu já deveria estar acostumado com isto nesta idade. Mas não, cada vez é uma surpresa diferente. Olhe para mim agora, sou uma estrela preta. Não me olhe assim, querida. Acredito que desta vez será mais rápido. De toda forma, poderia me ajudar a levantar? Não estou conseguindo e preciso logo ir trabalhar.
Ela o ajudou. Esse era o casamento deles. Por mais de vinte anos, eles sempre estiveram ali para ajudar um ao outro nestes momentos.
– Não entendo porque você não tenta descansar um pouco, fique em casa hoje. Podemos assistir àquele filme que ainda não conseguimos ver.
– Espero que entenda, mas preciso ir. Hoje mais que nunca.
Com a ajuda da esposa, ele se levantou. Fez sua rotina matinal, pegou o elevador, e saiu do prédio. Caminhou 283 passos até a grande porta de metal. Deu duas batidas na porta, um homem alto o atendeu. Se cumprimentaram e ele entrou.
Ali ficou até o dia terminar. E assim o fez nos próximos meses. Todos os dias acordava na esperança de ter se metamorfoseado novamente, mas a cada manhã que despertava, checava as extremidades: nada mudara, permanecia na mesma forma, uma ponta espetada para cima, duas pontas superiores para as laterais e duas inferiores, todas pretas, todas com a mesma exata medida.
Em uma destas manhãs acordou num rompante. Estava tendo sonhos intranquilos novamente. Sua esposa percebeu a agitação e tentou lhe acalmar.
– Sonhos agitados novamente? – perguntou abrindo os olhos e sentando-se na cama.
– É, parece que continuo tendo estes sonhos, mas quando acordo não consigo lembrar de nada. Deve ser culpa desta forma que estou preso.
– Sei que você não está muito satisfeito com esta metamorfose, mas pense bem. Lembra quando nos conhecemos e você era uma máquina de lata?
– Como esquecer? Não podia ficar duas horas sem lubrificar o óleo, ou tudo parava e eu não podia me mover. Não foram anos muito fáceis. Pensando bem, é até irônico que seja estrela agora. Já fui tantas coisas, já fomos tantos.
Com a ajuda da esposa levantou da cama e encarou mais um dia, mesma rotina, mesmos 283 passos, mesma porta de metal. A noite, já em casa, ajudou a filha com a lição de francês. Tomava um chá quando sua esposa chegou.
– Parecia que o dia não terminaria nunca. Estou precisando urgentemente de um banho. Ah, peguei seus sapatos vermelhos emprestados hoje. Aqueles que você usava para dançar. Espero que não se importe.
Concordou com a cabeça, não haveria porque se importar. Amava sua esposa, jamais conseguira lhe negar nada. Lhe daria a vida, caso pedisse. Mesmo depois de todos estes anos não se cansava de admirá-la. Como era linda e como havia envelhecido graciosamente! Lembrou de quando a viu pela primeira vez e de repente sabia que passaria o resto da vida ao seu lado.
Sua voz o trouxe de volta a realidade.
– Querido? Pensei em pedirmos comida daquele restaurante que você adora para o almoço amanhã. Acredito que não vá trabalhar, afinal é domingo.
Novamente concordou com a cabeça, mas nada falou. A imagem da esposa ali parada na escada encheu-lhe a cabeça de lembranças, e com elas pensamentos sobre o futuro. Qual seria a próxima metamorfose? Será que algo mais agradável? Fosse o que fosse, sabia que tudo ficaria bem. Tina estava ali, e assim como ele, ela também o amava. Isso era o suficiente.
Quando chegou no quarto, ela já estava dormindo. Deitou-se apagou o abajur e descansou.
Acordou cedo no domingo, como era de costume. Ainda era uma estrela, as pontas continuavam iguais, tudo da mesma forma. Silenciosamente rolou para fora da cama, apoiou-se na parede e com um impulso levantou-se. Desceu as escadas para preparar o café da manhã. Foi até o quarto, deu um beijo em Tina e a convidou para descer. Fez o mesmo com sua filha. Juntos os três tomaram café da manhã, conversando sobre assuntos triviais. Felizes.
Naquela noite, sentiu uma dor profunda. Sentiu a mudança chegando. Os sonhos intranquilos o atormentavam novamente. Acordou assustado, mas não conseguia abrir os olhos. De repente lembrava dos sonhos. Apavorado tentou gritar, porém nenhum som parecia sair. Ali, parado e imóvel, sentiu a presença de Tina. Ela dormia profundamente. Uma paz que somente os anjos devem experimentar. Outra contração, desta vez vinda do peito acompanhada da incontrolável dor. Uma vida desenrolada em segundos. Soube que esta seria a última vez, sua última forma. E assim, rápido como um raio tudo pareceu se iluminar e como vidro se despedaçou.
O que se sucedeu naquela noite tomou conta do mundo. Por todos os cantos pessoas comentavam o seu destino. Uns dizem que virou cinzas e se espalhou pelos céus. Já outros, afirmam que assim como na primeira vez, voltou ao espaço. Virou pó de estrela.
Ramon Steffen
JANEIRO 2016.
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