Só o design salva?

Só o design salva?

18 de abril de 2008 Moda 0

publicado na coluna Cultura do UseFashion Journal em abril de 2008

Há tempos carrego comigo um pequeno livro. O título é Design no Brasil Origens e Instalação, e a autora é Lucy Niemeyer. Alguns o consideram um clássico e devo concordar, porque ele é mesmo dos bons. Quando o comprei li de uma só vez. Depois reli com menos pressa e apreciei melhor suas qualidades. Volta e meia ele me faz companhia e esclarece alguma dúvida sobre o assunto. Retomo-o nesse artigo, em parte pelo prazer de abordar uma publicação de 97 e me furtar à necessidade de coisas e fatos imediatos que a moda impõe. Em parte, para assuntar sobre a forma como o Design é anunciado atualmente: uma espécie de salvador da indústria da moda nacional.

Logo na contracapa, um texto de apresentação chama a atenção para “o quanto pudemos (e talvez ainda possamos) ser não apenas periféricos como, infelizmente, pernosticamente provincianos” em relação ao assunto.

Niemeyer cuida de investigar os esforços de definição da profissão e a instalação de um corpo de estudos e ensino sobre o Design no Brasil, nos anos que antecedem ao golpe militar de 64. Como uma das protagonistas daquela geração, ela fala dos erros e acertos, enumerando fatos que reforçaram nossa antiga dependência em relação ao pensamento e valores fundamentados no exterior. Também dedica boa parte do trabalho a apontar as distorções decorrentes do choque entre as forças em disputa na época. Segundo ela, o entendimento do que seria o design e de quais as especificidades da profissão permaneceu nebuloso desde então. Em um outro trecho, o texto de apresentação afirma que “a autora vai nos mostrando algumas das razões das nossas dificuldades em ter um design que ande com as próprias pernas, que nasça de um pensamento autóctone, reelaborando experiências de outros países.”.

E é o que ela faz. Além disso, Niemeyer traça três perfis de entendimento acerca do que é o design: em primeiro, “o design visto como atividade artística”, e o designer valorizado pela dimensão criativa de seu trabalho; em segundo, “o design como um invento, um planejamento” e o designer um profissional voltado para a melhoria do processo de fabricação; por último, “o design como coordenação” e o designer como o responsável por integrar as contribuições de diferentes áreas.

Esse cuidado com a definição da atividade e do profissional que a pratica, era uma necessidade na época, uma maneira de esclarecer os compromissos de uma “profissão de síntese de diferentes especializações e conhecimentos”. O tempo passou, a imprecisão permanece, e nas práticas da indústria de moda e na compreensão de boa parte dos seus agentes, criador e criatura, somam estas atribuições e ainda tantas outras de circunstancias.

Mas vamos retomar a idéia do design redentor. Na maior parte das vezes que ele é invocado, não se conjura o que ele implica de predisposições históricas, conjunto de procedimentos e ambiente cultural.

Surgiu daí uma brincadeira iconoclasta entre amigos: o Design é fiel, o Design tudo vê, e só Ele pode nos salvar. É que há algo de fé cega na forma como tratamos o design, visto como um raio de esclarecimento, capaz de redimir nossa produção de objetos de moda dos seus muitos males e nos salvar da mediocridade da cópia, da falta de expressão e do inferno das vendas ruins. Contudo, foram anos de negligência com os processos criativos que nos trouxeram até aqui e ele não é um ingrediente que se acrescente à receita a partir apenas de uma tomada de decisão.

Grande parte do aprendizado de moda no Brasil é resultado da prática da cópia do produto pronto, decalcado das coleções de marcas internacionais. É provável que o desconhecimento da real origem dos objetos (releituras de formas do passado, desenvolvimento de projetos em uma prancheta ou software, por exemplo) tenha contribuído para fazer deles entidades míticas, para tornar obscura e limitada a percepção dos meios pelos quais eles irrompem na realidade (leia-se vitrines), e ainda permitir que o desenho que os torna interessante se confunda com uma obra espontânea da natureza, ou mesmo do além.

A cópia de um objeto não escreve uma história consistente para quem se apropriou dele, ainda que seja um objeto com design (sic), mimetizando as características do original. Esta confusão se instala ao adotarmos a idéia de design apenas como diferencial técnico e formal. Não que neste caso estejamos de todo equivocados, mas também não abarcamos o sentido integral da coisa. Fica de fora a identidade do produto e seu contexto, que é o que vai carregá-lo dos significados que não vemos, mas percebemos e pelos quais ele se vende.

Depois de esmiuçar os vai e vens de interesses na origem da instalação do design no Brasil, Lucy Niemeyer adverte: “A análise de todo este processo histórico nos leva a crer que é bastante questionável o caráter emancipador atribuído ao design por alguns”.

É por estas e outras que carrego este livrinho comigo. Para que ele não me deixe esquecer de coisas simples sobre o tema, tão exaustivamente invocado quanto ausente do nosso cotidiano. E também para evitar o uso do termo em vão.

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