The Square: o filme e a discórdia

The Square: o filme e a discórdia

22 de janeiro de 2018 Arte, Colunas, Opinião 0

Um curador é assaltado nas ruas de Estocolmo. O jovem funcionário do museu para o qual o curador trabalha rastreia o celular roubado e sugere algo que vai servir de gatilho para o desenrolar de uma série de confrontos entre miséria e riqueza, entre privilégios e a falta deles, entre o mundo culto e a barbárie, entre o sentido e o non sense. Quase sempre estes conflitos são desfiados com  potência ao longo do filme.

A trama gira em torno da obra de uma artista prestes a ser inaugurada. The Square, um quadrado de 4X4 m demarcado no piso, é anunciado como um espaço simbólico de aceitação e de igualdade. Dois jovens marqueteiros avaliam que é preciso criar uma provocação extrema para que a inauguração tenha repercussão nas redes sociais. É quando decidem pela criação de um vídeo no qual uma criança pobre é explodida dentro da obra.

Em torno do museu e da trama central, mendigos e imigrantes habitam os cantos escuros da cidade abastada, se espalham pelas ruas e pedem dinheiro em shoppings. Na escadaria do edifício luxuoso, o curador rico enfrenta o menino imigrante que o ameaça no seu habitat.

Os efeitos do choque entre universos diferentes, que de início aparecem como devastadores, de alguma forma são acomodados como parte da ordem. A desgraça e o constrangimento do alto funcionário que é demitido não significa o fim de nada. Uma mulher acusa o curador de falta de humanidade, um repórter considera o recuo do museu que publicou o vídeo uma ameaça à liberdade de expressão. A polarização é o que protagoniza a questão e a indignação diante do vídeo em que a criança é explodida provavelmente será conduzida ao esquecimento.

A suposta má fé da arte, dos seus agentes e das estratégias de comunicação,  abordados como modos agudos de organização da sociedade atual, serve como gatilho para desvendar uma visão de mundo e suas nefastas consequências.

O filme que faturou Cannes faturou também admiração e desprezo em igual medida. Não é para menos.Manipulando nosso desconforto ele expõe fraturas sociais mal calcificadas com encenação e ritmo fortes. Também sugere que as narrativas que prevalecem – eventualmente sedimentadas nos museus — são determinadas no próprio universo de quem as produz. Mesmo quando forjadas na acidez da autocrítica. Isto não é propriamente uma revelação, mas a maneira de filmar esta e outras ideias, causa impacto suficiente para que acreditemos que é.

O problema é que este é um filme festejado como um crítica feroz. Mas uma crítica a quê, exatamente? À insensibilidade dos ricos? Ao vazio da arte? Grande parte da empatia do público é acionada nestas duas chaves. Mas toda a suposta ferocidade se esvai em catarses calculadas, caso do mergulho do homem rico no lixo,  e em concessões duvidosas: diante de pilhas inexplicáveis de entulho no chão da galeria, e do artista que fala e não diz nada, é hora dos risinhos complacentes no escuro da sala do cinema. Me pergunto se o diretor acredita mesmo que que a arte contemporânea é a falácia que ele insiste em demonstrar que é.*

Mas seria injusto não mencionar que o sueco Ruben Östlund produz cenas memoráveis. É muito bem realizada a da performance do artista homem-macaco durante um jantar de gala. Em outro momento, após o sexo, um curador (socialmente poderoso) e a jornalista (nem tanto) disputam o sêmen contido na camisinha. Ela diz que vai jogar a coisa no lixo. Ele reluta agarrado ao artefato de borracha esticado entre os dois. A desconfiança dele quanto ao destino que será dado ao seu valioso material genético é cômica. E é assustadora..

É possível dizer que o material genético deste filme tem parentesco com Fellini e Bunuel. Uma ramificação mais recente conduz ao “A Grande Beleza” do Paolo Sorrentino, de 2013, outra crônica do imediato agora, só que bem menos comprometida em cortejar nossa empatia a todo custo.

No quadrado delimitado pelo cinema alta cultura de Östlund, a arte contemporânea é escada para piadas e pobres e imigrantes de triste figura são coadjuvantes incômodos. Funcionam apenas como contrapontos para uma discórdia com prazo de validade: depois de duas horas no cinema, também ela será esquecida.

*O escritor Enrique Vila-Matas fala do assunto no livro “Não há lugar para lógica em Kassel”. Ele narra a experiência como convidado de uma edição da mostra de arte na cidade alemã. Contornando o que identifica como um pré julgamento  recorrente – e desqualificado – ele procura abrir-se para as experiências que as obras de arte da exposição propõe.

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