Tout le matériel de recherche
A francesa
O caso não é meu. Quem contou-me foi uma amiga, que há de compreender o fato de não dar-lhe o crédito, evitando assim trazer à tona nomes próprios e abrir caminho para outras indiscrições. Não sei precisar a data exata em que a ação se passa, mas, por alguns detalhes da narrativa, como a presença de algumas (hoje) estrelas da moda nacional, deduzi que estamos em algum ponto do final dos anos 1980. A cidade é São Paulo, o local, uma sala de aula. Não a de uma faculdade de moda, que era coisa rara na época. Um espaço filiado à indústria, talvez. A senhora que deveria ministrar o curso era uma francesa. Irascível, como só os franceses sabem ser, aguardava a turma detonando o segundo maço de Gauloises, embora a manhã ainda estivesse pelo meio. A esta altura devo dizer que, sobre os detalhes, parto abertamente para a ficção. Tudo o mais deve ser fato. Pois bem. Em contato anterior, ela, a senhora francesa, havia avisado aos participantes que era imprescindível levar “tout le matériel de recherche” no primeiro dia. A quantidade de revistas, birôs transportados diligentemente até o local e o desenvolvimento posterior do caso, indicam claramente uma era pré-internet, confirmando minha datação. Para surpresa de todos, ela recebia o material com indiferença. Ao invés de emitir opiniões sobre o que era submetido à sua autoridade, amontoava os impressos em um destes armários cinzentos que povoam as salas institucionais. Ele engolia L’Officiels, Vogues e Promostyls, sem nenhuma distinção hierárquica. Mas o golpe final ainda estava por vir. Ela trancou a porta acanhada, guardou cuidadosamente a chave e (touchè!) entre uma baforada e outra, anunciou que o material ficaria inacessível até o fim do curso, previsto para terminar em um mês. Como supremo desmando, segundo opiniões, justificou o gesto da seguinte forma: “Vocês brasileiros não sabem trabalhar a não ser copiando. Aqui, comigo, vão aprender o que é criação”.
O que seguiu-se nem foi de bom tom. Inconformados, alguns alunos partiram para o confronto aberto. A distinta senhora bateu boca, soltou mais algumas baforadas furiosas, mas não voltou atrás. Consta que pelo menos um terço da turma abandonou a sala de aula para nunca mais voltar. Neste ponto, ela ajeitou o cabelo, esfregou as mãos, acendeu outro Gauloise e, em meio à nuvem de fumaça, disse: “Au travail, mes amis!”
Trecho do texto Tout le matériel de recherche, do livro O Lugar Maldito da Aparência, de Eduardo Motta. À venda no site da Editora Estação da Letras , na Cultura na Saraiva e até nas Casas Bahia.
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