Um esboço de Brasil: Parte 01 Fortaleza
Em abril de 2013 pude ver o Brasil pelo olhar não apenas de um, mas de dois estrangeiros. Meu escritório convidou a curadora do Museu de moda da Antuérpia, Karen Van Godtsenhoven, ao país para uma série de palestras. Ela veio junto com o namorado, Hans Caarls, um arquiteto interessado em comida incomum, de gestos discretos e dono de um insuspeitado senso de humor. Juntos, atravessamos um pedaço do país salpicado de praias e fashion weeks, moldado pela arquitetura, amedrontado pelos crimes urbanos e envergonhado pelo Pastor Feliciano. Durante a viagem, a presença de Hans determinou deliciosas visitas a projetos arquitetônicos brasileiros. Armamos um roteiro que deveria ser para eles, os estrangeiros, mas, passados os dias de muitos vôos e hotéis, caiu a ficha do quanto a experiência se tornara também nossa.
Desembarcamos inicialmente em Fortaleza. Vindos de Bruxelas, Karen e Hans haviam feito uma parada em Lisboa. Eu e minha parceira de trabalho, Fernanda Daudt, vindos de Porto Alegre, ganhamos algumas horas entediantes no aeroporto de Viracopos, em Campinas, no estado de São Paulo. Nunca havia procurado saber o porquê deste nome curioso: Viracopos. Parto agora para minha primeira digressão de conhecimento histórico/turístico neste texto que deve abrigar muitas delas. Existem duas versões sobre a origem do nome Viracopos. A primeira sugere que um desentendimento entre o pároco do bairro e seus habitantes, em uma noite de festa, resultou em bebedeiras, brigas e quebra das barracas da quermesse da Igreja. Posteriormente, a palavra usada pelo padre nos sermões, para se referir ao acontecimento, era “viracopos”.
Outra versão conta que no local hoje ocupado pelo aeroporto havia um bar onde tropeiros se encontravam para “virar copos”, descansar e trocar informações sobre viagens. “Viracopos” deu nome ao bairro e, mais tarde, ao aeroporto. Se alguma delas é verdadeira, não posso afirmar com o devido rigor, mas gosto de ambos os relatos, e gosto da literalidade de acento português que o nome sugere.
Voltando ao fio condutor deste relato, vou esclarecer melhor porque havíamos chegado a este ponto, eu e Fernanda, ciceroneando uma curadora de moda e um arquiteto vindos da Bélgica, pelo país.
Espremida entre países de histórico forte na área, como a Itália e a França, nada mais improvável que a Bélgica se tornasse referência no campo da moda. Some a isto o fato de que os belgas, em razão desta proximidade com vizinhos poderosos, não estabeleceram um sentimento coletivo de autoconfiança que sugerisse o protagonismo que viriam a alcançar. O Momu, museu do qual Karen é curadora de exposições, é uma das raras instituições bem sucedidas nesta área complicada, a da memória da moda, conceito que é por si só uma espécie de paradoxo. Favorecido pelo surgimento de uma geração talentosa no começo da década de 90, ele é a memória e o laboratório vivo para esta pequena e significativa epifania: o grupo belga. Conhecido como Antwerp Six, junto com Martin Margiela ele foi responsável por um dos maiores impactos na área dos últimos 30 anos. A combinação do talento dos jovens designers com a força de um bom programa educacional somado à participação governamental virou o jogo de forma fulminante. Hoje, falar em Antuérpia é quase um sinônimo de moda e pressupõe experimentalismo e qualidade. A moda na Bélgica é atividade associada à capacidade criativa, provém, no entendimento comum, de um esforço educacional e conta com um museu ativo para registrar os feitos passados e investigar o futuro. Nada mal. Pois bem, a moda no Brasil vai escrevendo história própria. É mais abordada na sua dimensão comercial e seus atores tem dificuldades para estabelecer parâmetros de criação livres dos vícios adquiridos no passado. De um lado pela herança colonialista, que impõe um excessivo apreço pelo que vem de fora das próprias fronteiras, de outro pela rede protetora que, no início, ajudou a moda a se firmar por aqui. Como efeito colateral, esta mesma rede hoje dificulta uma avaliação realista sobre as reais qualidades e deficiências dos seus atores, sejam eles históricos ou contemporâneos. Pois bem, ao nosso escritório interessava (e interessa) atuar exatamente neste ponto nervoso e a experiência belga, se excluirmos o apoio governamental e guardadas outras diferenças continentais, nos pareceu ter pontos de convergência reveladores da condição brasileira. Explicados os porquês deste tour, vamos à primeira parada:
Fortaleza
A semana de moda cearense é posicionada como mais autoral que as outras, mais ligada à cultura regional que as demais e construiu um modelo em parte fundado nestas afirmações, em parte estabelecendo diálogo com o modelo tradicional. Eu já estivera lá antes. Na época anotei:
“A cidade é o palco plano e quente do espetáculo da especulação imobiliária que avança vertical e indiscreta sobre a capital nordestina. Pelas avenidas largas, margeadas por concessionárias de automóveis, tão reluzentes como o que nos levava, voltamos ao agito do Dragão Fashion, semana de moda que é entrelaçada com a cultura regional, enquanto se movimenta com desenvoltura no caldo da moda contemporânea e global.”
Tudo permanecia como eu descrevera um ano antes, desta vez amplificado pela receptividade concedida por nós brasileiros a quem nos olha de olhos claros e nos fala com notória dificuldade com a língua. Vi outras capitais abrirem mão deste atributo pela cordialidade fria do cosmopolitismo. Não posso lamentar, nem saudosista sou, mas foi ótimo desfrutar desta qualidade preservada na capital nordestina.
Não ficamos apenas deitados nas areias ou mergulhando nas águas mornas que banham a cidade, mesmo porque estas práticas tão brasileiras não são populares nas praias de lá, repletas de atrações e esvaziadas de banhistas. Trabalhamos bastante em Fortaleza. Assistimos a um desfile do Lino Villaventura, veterano de grandes momentos da moda nacional, ministrei uma oficina de práticas criativas e assistimos alguns desfiles. Karen falou para convidados na cerimônia de abertura e ouvimos outras falas e depoimentos de agentes locais. Estes, sem os clichês dos discursos de gestão viciosamente entronizados nas práticas profissionais do país. Na última noite, apesar da oferta de restaurantes de nomes sofisticados, optamos por um pequeno estabelecimento em um bairro afastado. O lugar chamava-se Sovaco de Cobra. Lá, abrigados pela impossibilidade zoomórfica, experimentamos cachaças variadas, boa comida e nos deliciamos com a experiência.
Se Fortaleza é o palco da especulação imobiliária, um retrato do dinheiro novo que circula pelo país, é também o cenário de expansão da moda brasileira. Um sem fim de pequenas confecções espalha-se pela cidade, um poderoso arsenal de técnicas artesanais está à espreita em cada canto e uma geração nova e sedenta por se colocar no mapa global comparece a palestras, oficinas, desfiles e discussões. Nada mal. Mesmo. Quem é da área e ainda não se deu conta do que está acontecendo por lá, é melhor colocar o assunto em dia.
Próxima parada: Rio de Janeiro. Amanhã na segunda parte deste texto. Não perca!
Fortaleza vista do Pier da praia de Iracema. Foto: Acervo Radar.
Imagem desfile Lino Villaventura: Nicolas Gondim. Download do site do Dragão Fashion Brasil.
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