Um esboço de Brasil: Parte 3 São Paulo
Para ler o texto completo clique aqui.
Pousamos na cidade à noite, velozmente engolidos por um mar de pequenas luzes que se estendiam pelos quatro cantos do horizonte. Nossos convidados não tinham idéia do tamanho real da cidade. Enquanto pousávamos iam conferindo conosco algumas informações básicas e surpreendentes para eles.
Em dois táxis, saímos do aeroporto de Congonhas para o Hotel na Paulista. As torres iluminadas, a temperatura vários graus abaixo e as pessoas agasalhadas pela rua provocaram comentários atônitos. É como outro país, diziam. E era mesmo, concordamos.
O hotel confortável e impessoal instalou a impressão de que São Paulo era como todas as grandes cidades do planeta. De banho tomado e com agasalhos leves caminhamos poucas quadras para chegar ao Spot e dividir o espaço com frequentadores “cosmopolitas”, na definição dos nossos convidados. Na mesa ao lado, Francisco Costa, que desenha a Calvin Klein, bebia com amigos. Àquela altura, um círculo se fechava. Tudo era diferente, mas de certa forma complementar. A força da cultura popular e do dinheiro novo que atravessa a arquitetura e a moda no Ceará, a velha corte carioca com seus vícios, agrados e belezas estupendas estavam definitivamente trocados pelas paredes envidraçadas dos prédios de escritórios. Cortejados por cardápios bilíngues, pelo profissionalismo de gente apressada, e pela incontornável exigência de bom desempenho que a globalização impõe, havíamos deixados de vez os clichês do país tropical.
Na primeira manhã em São Paulo, um taxi nos levou ao Museu do Ipiranga. Ficou claro que enfrentar o tráfego e atravessar bairros tipicamente paulistas, para estacionar ao lado de um jardim francês de sebes bem aparadas e repuxos brancos contra o céu, pode ser uma experiência curiosa para um estrangeiro. O prédio imponente estava fechado. Como tínhamos agendado a visita, a diretora de conservação, falando um inglês impecável, nos guiou pelos interiores kafkianos da instituição. Para chegar à sala dela, subimos estreitas escadas, atravessamos portas baixas e cruzamos uma singular passarela que cruzava sobre o telhado de uma área que divide as duas torres. Uma vez do outro lado, ela nos mostrou um grande recorte no chão que expunha as estruturas internas do edifício. Estamos com problemas, ela revelou, os técnicos estão examinando a partir deste ponto, e apontou o corte que expunha a fragilidade do prédio ameaçado pelo próprio peso. Pareceu-me como se o artista norte americano Gordon Matta Clark houvesse aprontado uma das suas históricas investidas noturnas e roubado um retalho da velha estrutura.
Pacientemente, ela nos mostrou em imagens na tela do computador o acervo que não estava exposto por falta de espaço e condições. Artefatos japoneses, europeus e de outras origens traiam a diversidade cultural brasileira e desafiavam compreensão da curadora estrangeira, acostumada ao recorte nacional dos objetos no seu museu.
Dali partimos para o hotel e gastamos o resto da tarde caminhando a pé pela região dos Jardins. Passamos pela livraria Cultura, visitamos as lojas Alexandre Herchcovitch, Osklen e Adriana Barra. Karen experimentou dois vestidos do Alexandre, olhou atentamente as costuras internas de um casaco e aparentemente gostou do que viu. Nada lhe caiu bem o suficiente para que ela sacasse o cartão de crédito, entretanto. Na Osklen mesmo depois de se espantar com os preços e comentar que a peça escolhida uma saia curta de tricô em preto e marrom, fora do contexto não carregava nem a marca nem o Brasil, pagou por ela e saiu feliz com a pequena sacola branca. Era um momento particular, obviamente, e não uma pesquisa. Quando atravessávamos a Oscar Freire meu telefone tocou. Do outro lado ouvi a voz da Cristiane Mesquita. Era ela o nosso contato em São Paulo, a organizadora da terceira e última apresentação da Karen no Brasil. Cristiane nos convidava para o lançamento de um livro do qual ela fizera a edição de textos e assinara um deles. Passamos rapidamente no hotel e fomos ao lançamento. Bastou chegar no local para ver que havíamos tomado uma decisão acertada. Um grupo respeitável passou por lá. Ainda que breve e social, o momento deu dimensão positiva da cena acadêmica em torno da moda brasileira. Hans ficou mobilizado com o ambiente da Livraria da Travessa na Alameda Lorena. Os cortes entre os diferentes andares, as soluções no desenho das estantes e toda a despretensiosa, mas sofisticada racionalidade do projeto, lhe causaram forte impressão.
Na manha seguinte, assim que possível, partimos para uma visita cronometrada à exposição curada por Hans Ulricht Obrist na Casa de Vidro, residência projetada pela Lina Bo Bardi e onde ela viveu por 37 anos, no Morumbi. Chegamos lá às 11 horas conscientes de que teríamos apenas uma hora para a visita e mais outra para chegar ao CCBB, no centro da cidade, onde aconteceria a palestra e Karen daria uma entrevista para um site brasileiro. A Glass House é um destes espaços miraculosos pela qualidade visionária da concepção arquitetônica e arrebatador pela perfeita integração com o terreno, que o visitante pode explorar em pequenas trilhas nas encostas verticais. Além disso, havia a exposição. Duas fotos de Gilbert & George, clicados no interior da casa, os bancos assinados pela Rivane Neuenschwander em disposição mimética com a mobília original, o espelho do Olafur Oliasson, as caixas do Paulo Nazareth nas áreas externas. Cildo Meireles recompôs uma cena imaginária em que a voz de Pietro Maria Bardi, marido de Lina, ecoa pela casa dizendo: Lina, va fare um cafe! (Lina, vá fazer um café!) O tom imperativo, com algo de chauvinista, dá ainda mais graça à peça de ficção. Na saída, enquanto esperávamos pelo taxi, o porteiro nos contou vários casos em torno da exposição. Falou-nos do vizinho incomodado com o velho carro estacionado diante da casa no bairro nobre (obra do Paulo Nazareth em referência a um idêntico que Lina teve no passado), o do menino que levado pelo pai revoltou-se pelo fato da casa não ser exatamente uma casa de vidro, o dos vândalos que haviam quebrado uma obra…
No centro Cultural Banco do Brasil, de casa cheia, Karen precisou evitar, outra vez, responder à pergunta que todos haviam insistido em fazer durante toda a viagem. O que ela achava da moda brasileira? Neófita no assunto, ela não tinha como saber. A esta altura, entretanto, já se dera conta da diversidade e da complexidade da produção, pulverizada pelas enormes distâncias regionais e pelos aportes de culturas diferentes. Não assistira aos desfiles da SPFW, não vira todos os do Rio, não esteve em Minas, no Acre, no Piauí ou no Rio Grande do Sul. Também não conhecera outras marcas, escolas, designers e lojas, mas teve diante dos olhos uma amostra considerável da moda nacional, atravessada por arte contemporânea, arquitetura moderna, gastronomia e agudos contrastes culturais. Sem condições de opinar sobre moda brasileira, ela se concentrara em apresentar da melhor forma a experiência belga. Ressaltou o papel da educação, das instituições culturais e, principalmente, deu ênfase na criação como vetor para se chegar a qualquer coisa que não seja a mediocridade do lugar comum dos fenômenos momentâneos, que não se enraízam como manifestação imaterial, além das óbvias implicações materiais. Na mesa, como mediadores, eu e Cristiane, ajudamos da melhor forma possível a reiterar esta e outras idéias. Ao contrário dela, entretanto, sabíamos bem dos problemas tanto quanto das grandezas da moda Made in Brazil. Naquele momento em particular, também nos era possível enxergar o saldo magro da atual temporada brasileira.
Um pouco ali no CCBB, um tanto mais tarde com a Fernanda, nossa convidada foi sendo inteirada do que se passava. Ela nos ouvia atentamente enquanto narrávamos a saga das marcas de alta qualidade brasileiras, preteridas por marcas estrangeiras que podiam se compradas aqui ou no exterior. Explicamos como as brasileiras haviam se tornado proibitivamente caras, castigadas pelo famigerado custo Brasil. Como varias haviam desfalcado o line up das recém-terminadas fashion weeks e outras se apresentaram sem grande impacto, deixando espaço para os grandes fabricantes de streetwear e para os ateliês da moda feita sobmedida. Outra conversa tratou da migração de 40 milhões de brasileiros para melhores padrões de consumo e não necessariamente para melhores padrões culturais. Todo um novo cenário se desenhando diante dos nossos olhos e dos dela, antes que o anterior tivesse chegado à melhor forma. A velha história de não chegar ao apogeu.
Já era bem tarde da noite quando caminhamos a pé pela feiúra urbana da Augusta, no lado que desce em direção ao centro, para comer sanduíches veggies e beber no Carniceria. Voltamos esgotados para o hotel.
Na manhã seguinte, a derradeira dessa viagem, atravessamos a pé um longo trecho da Avenida Paulista para chegar ao Instituto Cultural Itaú e assistir à uma coletânea de filmes do artista Cao Guimarães. A última cena que me lembro é da silhueta de Fernanda, Karen e Hans contra a tela iluminada. Nela, em um filme brilhantemente fotografado, formigas enormes carregavam diligentemente uma miríade de confetes coloridos, destes que costumam restar pelo chão nos dias finais de carnaval, até sumirem com o brilho e a cor deles dentro de um pequeno buraco, escuro e voraz, aberto no chão.
Pouca cultura e muita saúva os males deste Brasil são, pensei, enquanto meu avião voava para Belo Horizonte, poucas horas depois. Os belgas já deviam estar no ar, Fernanda e Ramon também e o Brasil, deitado em berço esplêndido, permanecia ali, abaixo de todos nós. Essa é uma viagem sem fim, considerei. E este é um daqueles textos sem possível conclusão. Para compensar, vai aí o trecho de um artigo de Ricardo Gaiotto de Moraes¹, no qual ele usa o herói da obra de Mario de Andrade, Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, para fazer um esboço do Brasil.
Ele inicia com uma transcrição do texto de Mario.
“No fundo do Mato-Virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:
– Ai! que preguiça!…”
E emenda:
Macunaíma, “herói de nossa gente”, nasce no Mato-Virgem, ou seja, ligado a uma paisagem. Não tem pai, a não ser que consideremos como pai elementos do próprio ambiente geográfico. Nesta passagem, podemos perceber o nascimento de um mito, que tem em si características – ser sapeca e a preguiça – próprias de um ambiente.
Para concluir em citação filosófica:
Se compararmos essa passagem a outra de Spengler, perceberemos que o nascimento de Macunaíma nos mostra o nascimento de uma cultura : “Uma cultura nasce no momento em que uma grande alma despertar do seu estado primitivo e se surpreender do eterno infantilismo humano; quando uma forma surgir em meio ao informe; quando algo limitado, transitório, originar-se no ilimitado, contínuo. Floresce então no solo de uma paisagem perfeitamente restrita, ao qual se apega, qual planta.”
Porto Alegre, maio de 2013.
1 http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/m00004.htm
Compartilhe a sua opinião!
Seu e-mail não ficara público. Campos requeridos estão marcados com *