UMA COLEÇÃO DE MODA É BOA EM RELAÇÃO A QUE?
Cabe aos responsáveis pelo marketing da Riachuelo promover a coleção desenhada por Karl Lagerfeld junto ao publico ao qual ela está dirigida. É legítimo que usem adjetivos como ultrafashion, celebrem o visual despojado, mencionem o toque rocker, afirmem que os itens da coleção são desejo, relacionem as estampas à Pop e Art e associem a Pop Art a algo apenas divertido. Tá valendo que variações dos adjetivos exclusivo, personalizado, selecionado e certeiro frequentem o material de divulgação. Cabe a mim que escrevo sobre moda e me meti a falar sobre o assunto -mas que não faço parte da equipe de marketing de nenhuma das duas marcas- abordar o que Lagerfeld e a Riachuelo fizeram, mas de outra maneira.
Com a presunção de que acumulei alguma experiência para isso e utilizando uma gama de critérios variados, vou emitir opiniões a respeito. O momento em que, por algum motivo, acredito que deva fazê-lo, também é o momento em que devo ser fiel à experiência que adquiri e respeitar o tempo e a dedicação de quem vai ler o que irei escrever. Nada demais, trata-se apenas de fazer da melhor forma possível o que considero ser o meu trabalho utilizando os recursos que tenho. Assim como fizeram a Riachuelo e o Lagerfeld.
Estabelecido isso (e que, seja lá o que escreva, não será sobre se gosto ou não gosto da coleção) o que eu teria a dizer honesta e resumidamente sobre ela seria o seguinte:
Uma articulação engenhosa de clichês do streetwear jovem (preto, xadrez, formas, modelagens e proporções consagradas, etc.) com signos associados ao nome forte de um dos parceiros (Lagerfeld) e com a capacidade de fabricação, distribuição, divulgação e composição de preço de outro, em um mercado específico (Riachuelo).
Poderia me aventurar ainda por contextualizar esta coleção, majoritariamente em preto e vermelho, confrontando- a com o gosto da garota brasileira ou avaliar o mix ou a qualidade da execução. Faria tudo isso levando em conta minha suposta experiência, e não repercutindo integralmente uma informação que me foi passada. Poderia fazer muitas coisas, mas não vou fazer nada disso.
Espero de verdade que, apesar da introdução acima, tenha conseguido informar que este não é um texto sobre a coleção que Lagerfeld fez para a Riachuelo. Este texto é só mais uma reflexão sobre a escrita e a avaliação de moda. Outro que me ocorre nesta temporada de lançamentos.
Coleções de moda tem a pretensão de serem manifestações criativas. Que sejam entendidas como tal e fiquem sujeitas à avaliação é o que elas mesmas propõem. Corrijam-me se estiver enganado, pois estou interessado mesmo é em saber como se posicionam aqueles que fazem as coleções, com relação a este aspecto em particular, e por quais parâmetros nós, avaliadores, as avaliamos.
Uma coleção é boa em relação a que mesmo? Quais são os instrumentos e critérios empregados?
A técnica seria um deles? Se a resposta for sim, o padrão técnico poderia oscilar de acordo com o público?
Originalidade seria outro critério? Se a resposta também for sim, o nível de originalidade também oscilaria de acordo com cada mercado?
Quando há um tema, a boa relação entre tema e a formalização dele seria outro critério? E quando não há tema?
Que peso adquirem os valores mercadológicos e os criativos a cada avaliação?
Como avaliar adequadamente uma coleção de marca -desenvolvida com investimentos consideráveis por uma equipe anônima- e a coleção sujeita à subjetividade e falta de recursos de um autor?
Que lugar e que valor os sentidos que extrapolam a roupa, mas que o autor (a marca?) explora ocupam em uma avaliação da coleção?
Nem as regras de avaliação são claras, nem o avaliador deixa claro quais delas ele empregou. Na maioria, dos casos, não há avaliação coisíssima nenhuma. O que também é possível e é o que se chama divulgação.
Trocando o ponto de vista de quem avalia pelo de quem faz, se uma coleção tem pretensões como proposta particular todos os atores envolvidos com ela sabem o que está em jogo. Sabem que as propostas que a coleção encerra vão agradar alguns, desagradar outros. Estão cientes que coleções de moda são recortes e que elas devem permanecer assim, fenômenos particulares porque este é o ponto que justifica a sua existência. Entendem que a particularidade da coleção é o ponto que unifica quem faz, quem usa e quem avalia. Não é assim que é?
Quando o que está em jogo não é exclusivamente o aspecto mercadológico faz-se coleções de moda por tratar-se de algo especial e usa-se e avalia-se pelo mesmo motivo. Ou estou enganado?
Salvo aquelas coleções que operam com sentidos além da roupa e conversam até com quem nunca vai usá-las -caso dos refugiados do Ronaldo Fraga, das questões de gênero abordadas por outros, etc.- entende-se que coleções de moda atingem determinado público, e não mais que ele.
Uma coleção é boa para alguns, ruim para outros como pode não significar nada para a maioria, que vai permanecer indiferente a ela. Mas porque cito a maioria? A resposta não é complicada, embora seja reiteradamente evitada: em termos estatísticos, e por mais chato que seja admitir, é este o destino mais provável de toda coleção. Basta pensar quantas pessoas usam Osklen ou Prada. Sempre haverá quem não use, não goste e sempre haverá muito mais pessoas que nem lhes dê atenção. A indiferença na moda é um indicador a ser levado em conta tanto quanto o aplauso ou a reprovação. (Afinal de contas não é ela que representa o mercado em potencial?)
Seja como for, não há como escapar disso: a boa moda é relativa.
Se todos usassem a roupa João Pimenta, ela deixaria de ter as qualidades e significados que tem. Não se sabe em que escala de disseminação uma proposta atingiria este ponto, mas sabemos que ele existe. Dali por diante aquela roupa é outra coisa. Se tiver um destino glorioso vira história, t-shirt branca, calça five pockets. Caso contrário entra em extinção ou deixa de ter sentido como manifestação de moda. Como proposta particular.
Quanto mais genérica é uma proposta de moda, mais ela se torna inócua, mais se encaminha para a uniformidade que trai sua condição de fenômeno criativo em mutação. Mais ela se propaga, menos boa moda ou digna de interesse como moda ela se torna. Mais vestuário ela é. Há uma questão de escala que incide na avaliação da qualidade da moda que também evitamos encarar. Enquanto isso o fast-fashion se regala com este paradoxo: produz básicos e clichês sob a aura de moda criativa, exatamente aquilo que eles não são. Nesta chave, a moda é a não moda. É sua própria negação. Ou a melhor moda é a que vende mais?
Não é a toa que esta divagação sobre a parcialidade das coleções -e sobre sua exposição à critica- como algo positivo e inerente à ideia de moda, me ocorre neste período de lançamento de coleções. É quando ficamos diante de uma enxurrada de publicações a respeito delas. E é quando mais desconsideramos ou disfarçamos esta parcialidade e exposição.
Há uma impossibilidade matemática de que toda coleção seja uma boa coleção. Como há uma impossibilidade matemática de que todo avaliador, jornalista ou crítico se coloque na perspectiva de cada marca, autor e de seus respectivos públicos enxergando apenas pontos positivos nelas. Este é o papel do marketing. Teria que haver uma falha no sistema, uma ao menos, para que a regra parecesse crível.
Na avaliação de moda, quando decidimos que devemos amar incondicionalmente, é um desperdício. Não ha diálogo, nem troca. Apesar da falsa sensação de pertencimento, saímos todos -quem faz quem usa e quem avalia- subestimados e solitários no saldo final.
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