A AUTORIA NA MODA É IRRELEVANTE?

A AUTORIA NA MODA É IRRELEVANTE?

8 de junho de 2016 Moda, Opinião 2

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Se nas artes e na literatura, o conjunto de uma obra deve permanecer associado a um indivíduo determinado, na moda, a noção de marca se sobrepõe a esta figura fundadora. Ela é preservada como capital simbólico capaz de gerar valor, mas deve ceder espaço ao novo autor que, um pouco à maneira do original e um tanto à própria, assume o papel daquele que o antecedeu.

Saem Gabrielle (Chanel) e Christian (Dior) e o problema é facilmente resolvido: basta colocar outro profissional no emprego que era deles.

Esta autoria estendida é uma das condições singulares da autoria no campo da moda, inconcebível nos mesmos moldes em outras áreas. No horizonte dos candidatos a Picasso ou Charles Eames estaria um processo legal e não dinheiro e sucesso.

Na moda, a autoria migra para o direito de uma entidade empresarial que assume também o controle dos processos criativos. A transferência é legitimada pela compensação financeira e a vida segue seu curso sem maiores sobressaltos. Afinal, foi sempre essa a regra do bom jogo.

Atualmente, o impacto dessa transferência é ainda mais suave, graças ao fascínio que os processos de inteligência coletiva, mediados pelo uso de ferramentas virtuais, exercem sobre jovens profissionais interessados na possibilidade de criar em conjunto. Estaríamos na era do compartilhamento e, nela, as ações criativas devem ser exercidas coletivamente. Configurou-se, assim, um novo paradigma do processo de criação na moda sob a convicção de que uma maior variedade de pontos de vista nos departamentos criativos seria a melhor forma de tornar relevante o produto final. Sai de cena o autor e o problema é outra vez resolvido com facilidade: basta colocar uma equipe no lugar dele.

Não há como negar que o compartilhamento de inteligência funciona. Além disso, é este modelo coletivo o identificado com as práticas de trabalho no futuro. E ele vigora praticamente na totalidade dos postos de trabalho no presente.

Um dos efeitos desse quase imperativo é que, em boa parte dos ambientes corporativos, prevalece a cultura do anonimato dos membros das equipes de criação. As técnicas de gestão finalizam este arranjo, garantindo a contribuição individual sem que ela perturbe o modelo organizacional da empresa.

A exceção a este padrão é quando há um diretor criativo de status consolidado à frente da equipe. Por mais que exerça a função, ele está sujeito a outras forças de decisão. E elas são tão poderosas que a autoria é colaborativa e tende a ser mais representativa que de fato. Autores dessa categoria, apesar da visibilidade maiúscula, quase mítica, estão fora da curva estatística. Na indústria da moda contemporânea, o espaço reservado a eles não foi ampliado na mesma medida em que a moda expandiu os volumes de produção nas últimas décadas. A desproporção entre o número de aspirantes à condição de autor e as chances reais de exercê-la ficou ainda maior.

A moda produzida em grande escala redefiniu de tal forma o processo criativo que ele tende a ocorrer em limites estreitos, próximos aos que regem o trabalho em sistemas de montagem industrial. Do ponto de vista do autor, este ambiente é perigosamente tóxico. É comum que os criadores se afastem dele e fundem pequenos negócios, racionalizando o processo para viabilizar determinada visão que não teriam como desenvolver de outra forma.

É o que dá origem ao segundo modo de criação de moda vigente na atualidade.

Entre estes dois modelos extremos, o da criação coletiva – quase sempre anônima, que acontece nos ambientes corporativos dos grandes negócios – e o dos autores – que inventam marcas menores abrigados no contexto da economia criativa – o oxigênio é cada vez mais escasso.

Aqui é o ponto em que tenho que reconhecer que há variáveis em ambos os lados. Difícil vai ser afirmar o mesmo do espaço entre eles. Até pouco tempo atrás, muitos autores se estabeleciam no mercado também como empresários à frente de negócios de porte médio. Como o ecossistema que os abrigava foi colocado na zona de extinção, radicalizado entre muito grandes e minúsculos, não há mais condições de sobrevivência para quem produz em números medianos. Não é para eles que a cadeia produtiva e comercial está formatada.

Os tempos são outros. E as práticas idem. Assim como indicadores matemáticos passaram a ter autoridade sobre escolhas estéticas, tudo indica que a robótica deve excluir pessoas do processo de fabricação de roupas. E não é novidade que gigantes como a Amazon assumirão a liderança do setor usando estratégias nessa linha de orientação. Talvez venha por aí o pós fast fashion. Maior, melhor e mais barato, dirão os anúncios sobre a roupa criada e produzida nos moldes dos ventiladores e das embalagens de batata frita.

Nada contra ventiladores e embalagens de batata. Nem é a ideia defender o trabalho solitário, pregar contra as tecnologias ou sugerir que o Mal assumiu a direção das empresas. O problema é que a moda reivindica ser mais que isso: que ventiladores, embalagens, experiências previsíveis e frutos do Mal. Mas quem ainda não sabe que a produção massificada mina todo fenômeno como fonte de experiências significativas substituindo-as por outras irrelevantes? E não diziam os antigos que é no vazio de significados que o diabo se esbalda?

Ao manter o campo aberto à figura do autor, é a moda como sensibilidade e tesão, recheada de significados, que os pequenos negócios tentam preservar.

Na realidade, a imensa maioria das roupas que vestimos vem de outra cepa. É órfã de pai e mãe e provém de ritos automatizados. A vinculação com o humano fica centralizada nas estratégias de comunicação. São elas que nos apresentam os produtos e marcas como entidades sensíveis às nossas subjetividades, passíveis de serem, inclusive, amadas.

Tudo bem. Podemos nos apaixonar por empresas e marcas e pelo que elas nos entregam como experiência (no sentido que palavra experiência tomou atualmente, como uma extensão positiva do nosso relacionamento com produtos e serviços). Equipes podem ser incrivelmente inventivas e a noção de criação coletiva é um enorme ganho da cultura atual. Disso não há dúvidas. São os modelos de gestão da criação que raramente favorecem o que se imagina como um exercício de trocas inteligentes. Limitados a moldar a inteligência criativa à ordem do modo de produção, é assim que eles abrem os flancos para que duvidemos deles.

Apesar de fazerem uso abusivo de termos como inovação e de outras pérolas semânticas do ideário liberal, é de se pensar se aos grandes negócios de moda interessa realmente lidar com o caráter disruptivo da criação. O que parece pouco provável, a julgar pelo conformismo morno demandado às equipes, é que, nos ambientes corporativos, sobrevivam indivíduos em condições de gerar ideias. A racionalidade produtiva é uma necessidade e um imperativo para os grandes desde o fordismo. Garantir o controle do processo criativo eliminando a imprevisibilidade do resultado é objetivo dos modelos organizacionais dessa nossa era digital. Mas quem precisa de um modelo de criação no qual o indivíduo criativo seja um problema e a moda não mais sofra de imprevisibilidades? No plano criativo, descartar variáveis e indivíduos que “não se encaixam”  não seria um tiro no pé do próprio futuro?

É esperar para ver se este quadro não é assim tão dramático. Se não estou fantasiando e a gestão de talentos nem é tosca como penso que ela ainda é.

Na arte moderna e contemporânea, a relatividade da autoria é um assunto e a autoria compartilhada uma possibilidade. Nada disso eliminou o autor individual e a opção pelo coletivo não teria como ser imposta naquele ambiente. Talvez seja inevitável que na moda aconteça diferente, que a criação seja instrumentalizada e os criadores monitorados e dirigidos.

Pode ser que a moda abdique da condição de atividade criativa. Deixe de existir como tal e chegue o dia em que as roupas, assim como as embalagens de batata frita, apenas estejam por aí e nem tenham alguma importância em nossas vidas.

        Quem sabe no futuro caiba apenas às mega corporações nos entregar roupas e elas serão assumidamente commodities. É possível que haja quem explique isso como o momento épico em que a responsabilidade sobre as formas e sentidos do vestir teria sido finalmente transferida para nós, os usuários.

Talvez a crença nos mistérios que cercam nossa relação com as roupas “tornando cada uma delas única, apesar das milhões de outras iguais” sobreviva. Seremos todos autores quando este tempo chegar?  Quem sabe. Até lá, talvez, ninguém mais queira ser autor de roupas. Pode ser que assinar este texto nem seja relevante. Será? Pelo sim pelo não, recorro a essa fala – saturada de discreta poesia – que baixei de um site na web.

“Circular por museus e galerias, assistir filmes, falar com as pessoas, visitar novas lojas, folhear revistas tolas, me interessar pelas atividades nas ruas, admirar a arte, viajar: todas estas coisas não me são úteis, não me dão qualquer estímulo direto na minha busca por algo novo. Elas não podem me ajudar. Nem a história da moda pode. A razão para isso é que todas essas coisas acima já existem”.

Quem disse isso foi Rei Kawakubo, autora por excelência e resiliência. Para encerrar, aí vai mais uma. Esta – de uma luminosidade sombria – é do sempre impermeável às ilusões inúteis Michel Foucault.

“Os textos, os livros, os discursos começaram a ter realmente autores (diferentes dos personagens míticos, diferentes das grandes figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor podia ser punido, ou seja, na medida em que os discursos podiam ser transgressores”.

Sobre o autor

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2 Comments

  1. Daniel Maia

    9 de junho de 2016
    Responder

    olá, Eduardo.... excelente texto !!! Parabéns !!!!

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