A relação poligâmica da moda com a história
Personagens históricos de volta à cena. Figurinos bufantes e apresuntados. Gosto de naftalina debaixo da língua e anágua por debaixo dos panos. Na época em que o futuro mais se aproxima do imaginário futurista, a moda se deixa seduzir pelo que já foi.
Nanotecnologia. Biotecnologia. Tecnologia vestível. Wearables. Realidade aumentada. Robótica. Tecidos que saem de impressoras 3D e roupas acionadas por dispositivos eletrônicos. Uma revolução capitaneada por nomes como Iris Van Herpen e Neri Oxman, na busca por matérias-primas alternativas e outros designs. Tudo isso parece um delírio futurista de outra década, mas a moda tem se mostrado ágil na concepção de novos universos de vestir e comunicar. Um ensaio para um mundo pós-humano.
É claro que, na moda, há sempre um paradoxo que a faz ser o que é. Então, ao mesmo tempo que uma série de tecnologias surge no horizonte, povoando nossa imaginação e fazendo repensar meios de produzir, a moda dá um salto para trás e se volta para o passado, resgatando referenciais estéticos para dar conta de silhuetas e pulsões sociais.
Antes da pandemia eclodir, os desfiles do inverno 2020 deixaram uma sugestão empoeirada no ar. A impressão que se tinha é que a histeria brecholenta aberta pela Gucci há algumas temporadas daria espaço para novos estilos, não foi o que aconteceu: vários elementos historicistas caíram da arca perdida e voltaram a vida.
“O que aconteceria se o passado pudesse nos olhar?”. O questionamento não é meu, é de Nicolas Ghesquière, o diretor criativo da Louis Vuitton. Se escondido nas arestas da história é onde nosso presente está, a Vuitton fui fundo nisso. Ghesquière pediu a figurinista Milena Canonero, lendária parceira de Stanley Kubrick, para criar um cenário monumental com 200 cantores de coral vestidos com roupas históricas, partindo do século XV a 1950. Enquanto modelos em peças de alta tecnologia têxtil e padronagens robóticas desfilavam anáguas flutuantes, o passado as observa do topo do palco.
Ghesquière se tornou particularmente hábil em misturar altas doses de ficção científica com historicismos. Uma temporada atrás, as mangas elisabetanas que misturou com peças esportivas virou hit absoluto.
O evento não chegou a acontecer por conta da Covid-19, mas a Louis Vuitton era a patrocinadora da edição desse ano do Met Gala, que tem como tema, curiosamente, moda e história. About Time: Fashion and Duration mergulha no romance Orlando de Virginia Woolf para falar sobre os trajes e os gêneros, e as transições entre eles pela história a fora.
Por falar em história, esta velha conhecida não fez um passeio apenas na Louis Vuitton. Na Richard Quinn, um rococó francês se misturou a um fetichismo perfeitamente esculpido para as cenas de American Horror Story. Na Gucci, o mesmo tom sadomasoquista histórico acompanhou vestidos amplos altamente imperiais. A referência agora parece ser Erzebeth Bathory, a condessa sangrenta.
Na Moschino, voltamos para o rococó. Na visão contemporânea de Maria Antonieta, os famosos vestidos pannier do século XVIII ganharam revestimento de couro e jeans, um ar motoqueiro da rainha, com a tradicional estampa toile de Jouy em calções de ciclista. Uma temporada atrás foi exatamente o que Thom Browne fez, reimaginando a corte de Antonieta em peças de tons pastel mesclado a elementos clássicos da alfaiataria.
Ufa. Para fechar o assunto, aterrissa na história Rei Kawakubo. Para coleção da Comme Des Garçons, Kawakubo tentou incinerar a possibilidade de associações que eventualmente se criam ao observar um objeto. A ideia é tecer uma crítica a representação e construir algo sem referências pré-existentes (se é que isso é realmente possível). Considerando o histórico de experimentação estética da Comme Des Garçons, a ideia parecia fácil, mas a coleção — ironicamente ou não — também mergulhou em peças elisabetanas e anáguas.
Assim, sem necessariamente chamar de retrofuturista o elefante na sala, fechamos o ciclo e voltamos ao começo. Não é sempre assim com a história — e consequentemente com a moda?
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