Neopangéia: A Moda e o efeito colagem

Neopangéia: A Moda e o efeito colagem

23 de março de 2018 Moda 0

Colagem de Beomsik Won. O artista coreano manipula imagens de construções reais com construções fictícias criando arquiteturas surrealistas e miscêlanicas. (Foto: Divulgação)

Há 200 milhões de anos, a configuração do mapa mundial era dada por apenas um supercontinente chamado Pangeia. Algumas subdivisões e milhões de anos depois, chegou-se no formato que se conhece hoje, com seis belos continentes flutuando sobre as águas. A Neopangeia, por outro lado, é um conceito metafórico. Não se trata de promover uma nova era geológica — já que no assunto aqui não é o confronto de massas de terra que interessa. A associação é com uma era definida pela colagem de referências e o confronto é o que acontece entre culturas.

O artista coreano Beomsik Won —  autor da imagem que abre essa matéria — é um investigador e promotor de arquiteturas que não existem. Em um trabalho de colagem meticuloso, ele desmembra construções reais para criar outras distópicas, que falam sobre sociedades caoticamente fusionadas. Na fala modesta de seu criador seriam “apenas impressões sociais do mundo em que vivemos”; em outra via, é a ambientação perfeita para se considerar a maturação de uma Neopangeia cultural — um retrato, ainda que por analogia, dos tempos contemporâneos.

No atual cenário de urbanidade em mixórdia, as linhas territoriais e culturais se invisibilizam sob o impacto de uma rede altamente globalizadora; idealizando, assim, uma espécie de mundo alternativo, e simultâneo, que passa a vigorar na nuvem.

A exposição constante aos efeitos da internet — e da geração excessiva de informações — contribui para o desenvolvimento de uma sociedade de subjetividades voláteis, facilmente violáveis e, por vezes, frágeis. Os ecos dessa reconfiguração se materializam com especial intensidade na moda.

A começar com as linhas da universalização de estilos que assolam a produção atual. O Athleisure, uma fusão da linguagem do banal  em silhuetas uniformizadas, é o climax desse movimento. Consequentemente, o campo epidêmico do esportivo produz uma fenda por onde outras estéticas uniformizantes, como a do recente hardworker, possam ser geradas. Crachás, macacões com sinalização luminosa, sapatos pesados e todo o tipo de utilitarismo é fetichizado e adotado em coleções de marcas como Prada e Fendi. Um operador de máquinas num aeroporto, um corretor de imóveis, uma garçonete, uma cientista: todos podem ser confundidos com modelos na passarela. O que veste alguém em Quebec veste alguém em Hirosaki.

Assim, a moda, de antemão, precisou primeiro fertilizar o terreno com o cosmopolitismo, aproximando seu universo do cotidiano replicado em qualquer cidade, para poder esboçar o segundo passo: uma implosão deliberada dos limites culturais, eliminando as fronteiras entre roupa e indumentária. Um paradoxo nascido da ideia de que o particular supostamente possa ser alcançado pelo genérico.

De repente, modelos caucasianas vestidas com túnicas e turbantes de motivos africanos estão na passarela da Marc Jacobs — isso depois dele ter colocado lá, em outra estação, as mesmas modelos caucasianas usando dreads coloridos. No Outono 2018, elementos de povos indígenas norte americanos são levados para o desfile da Thom Browne — com as características tranças sendo adotadas por modelos pálidos. Num piscar de olhos, vestimentas típicas chinesas e muçulmanas passam a conviver tranquilamente ao lado de casacos de pele e botas brilhantes de apelo tecnológico.

Meses depois, surge um hijab na Versace. E outro na Dolce & Gabbana. E outro na Calvin Klein. E outro na Dior. Hijabs começam, subitamente, a frequentar passarelas nos quatro cantos do globo. Algo parece estar acontecendo.  A moda esboça um recuo e ele é lido por muitos como um sinal de conservadorismo. A imprensa passa a falar de apropriação cultural.

Com a chegada das recentes propostas da Gucci e da Balenciaga, a situação muda de figura. Para muitas marcas que utilizaram hijabs, a explicação estava  na intenção de contemplar mercados específicos dentro do mercado de moda global. Na Balenciaga, por outro lado, a referência está lá, mas não pode ser geoculturalmente rastreada. Já não se tem uma etnia definida: os lenços de cabeça podem ser de uma mulher muçulmana ou de uma trabalhadora agrícola do leste europeu ou do nordeste do Brasil. O mesmo na Gucci: nicabes e hijabs se misturam com vestes tradicionais romenas e mexicanas, adornadas por turbantes árabes ou chapéus figurativos chineses.

Ao que parece, a apropriação desloca-se para o estado de um simples truque de styling. E o que antes tinha a premissa de atingir um nicho, torna-se uma estética homogeneizada: a roupa-base de um povo que vive na Neopangéia — um ambiente sem rosto, mas cuja identidade sobrevive da colagem cultural produzida por uma mononação.

Para a professora, escritora e socióloga, Renata Pitombo Cidreira: ” a cultura é indissociável da aventura humana e devemos concebê-la como o lugar da experiência. A experiência do ser humano, por sua vez, deve ser compreendida como abertura, possibilidade e transformação, pois esta é a dinâmica própria da humanidade em sua vitalidade. Logo, o que tentamos esboçar é a ideia de que a cultura não é do âmbito da identidade ou mesmo da realidade, mas da possibilidade”

No entanto, é preciso levar em consideração algumas nuances entre cultura e identidade cultural. “É complicado afirmar que o uso de certas indumentárias características de grupos culturais por outros grupos “não integrantes” dessas culturas seja sempre inadequado ou deva ser criticado”. Ela argumenta que o processo de ressignificação de elementos culturais é um traço da própria dinâmica movente da cultura e, por conseguinte, do próprio humano. “O que deve ser observado é o modo como esses elementos são apropriados e de que forma a pessoa que as adota revela sua identificação com esses traços.”

Nessa dimensão hipotética em que o mundo veste a mesma camiseta, a identidade de uma sociedade pode ser facilmente impressa por uma impressora 3D. A Neopangéia é, em última instância, um quadro de colagens e não mais um organismo vivo. A gente é o que a gente veste? Não, a gente é o que a gente imita.

 

 

 

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