O avesso do espetáculo é o espetáculo no Inverno 2020 da Gucci

O avesso do espetáculo é o espetáculo no Inverno 2020 da Gucci

22 de fevereiro de 2020 Moda 0

Gucci, inverno 2020.

Alessandro Michele fez de novo. Armou o circo, esticou a tenda e elevou o termômetro do espetáculo Gucci a um ponto de combustão que nos fez questionar, pelo menos a primeira vista, se precisávamos mesmo de outro espetáculo. A julgar pelo conjunto da apresentação da coleção inverno 2020, a resposta é dada sem titubear: sim, precisávamos.

Tudo começou na semana anterior quando o diretor criativo da casa italiana enviou uma singela mensagem de voz via whatsapp pedindo que o convidado viesse ao show, caso não tivesse nada melhor a fazer. A alternativa de caráter sustentável, sem papeis impressos e outras firulas, soou coerente, dado ao número acachapante de resíduos envolvidos na produção do evento.

Como se as fronteiras entre a vida cotidiana e a temida passarela já não estivessem encurtadas o bastante, Michele recebeu os convidados nos bastidores, enquanto todo o casting era preparado para o grande momento. Em meio ao staff agitado, envolvido com maquiagem e ajustes de styling; jornalistas, celebridades e fotógrafos se acotovelavam no espaço de serviço.

Gucci, inverno 2020.

Algum tempo depois, o backstage se provou não ser um backstage tradicional. Uma enorme cortina caiu e a mistura de sala de imprensa, backstage e algo mais, se tornou o próprio espaço do desfile, uma espécie de carrossel envidraçado. “Você era o nosso show, e nós éramos o seu”, diria Michele mais tarde. Esse era o terceiro truque dele: o que antes era observado de dentro, agora era preciso olhar pelo lado de fora.

De frente para o público, modelos abandonavam uma a uma os roupões brancos e os bobs de cabelo para vestir peças góticas, setentistas e por vezes, hiper coloridas; enquanto o carrossel girava com o resto do casting — tudo ao som do hipnótico bolero de Ravel.

A imagem formada ilustra um certo drama pós-moderno: talvez manequins em uma vitrine de loja, um gabinete de curiosidades com personagens freaks, fantasmas anacrônicos e criaturas inadequadas. Rodando e rodando, ao passo que trilha sonora se elevava gradualmente ganhando novos acordes até soar como uma completa catarse.

Gucci, inverno 2020.

Então, o carrossel parou. As modelos saíram de dentro dele e o ladearam majestosamente, à medida que a equipe da Gucci, de uniforme cinza em tom futurista-operacional, deixava seus postos por de trás das bancadas iluminadas do ex-backstage e tomava a frente. Era um statement, uma forma de trazer a luz o trabalho invisível do desfile. O maestro do show finalmente apareceu: Michele atravessou o carrossel e as luzes o seguiram. No momento que cruzou as mãos em agradecimento, a música parou e tudo, orquestradamente, escureceu. Era o fim de mais um espetáculo.

Num devaneio momentâneo, a imagem do carrossel envidraçado fez ressoar a lendária coleção Voss, de 2001, de Alexander McQueen, também apresentada dentro de um espaço envidraçado. As modelos aprisionadas se chocavam contra a estrutura, lançando olhares investigativos, como se o público é que estivesse ali para ser observado, e não o contrário.

Voss, de Alexander McQueen, verão 2001.

No entanto, o desfile de Michele era sobre desfiles, e sobre seus rituais, que sobrevivem como eventos potencialmente repletos de encantamento, e que se repetem, temporada após temporada. Foi esse o momento que o italiano escolheu para explicitar as particularidades que coleciona.

Difícil não pensar na montagem icônica do coreógrafo francês Maurice Bejart para o Bolero de Ravel. De certo, uma referência. Estão lá o formato redondo do palco/passarela, o enorme metrônomo marcando o ritmo da trilha, da coreografia e como um comentário sobre os ciclos de todas as coisas. Comentário que se estende à moda que Michele cria. Em sua gênese, uma miscelânea de épocas e de gêneros, onde não há começo ou desfecho, em que peças de roupas sorrateiramente pulam de coleções para coleções, envenenando o império do novo proclamado pela moda que conhecemos.

A moda anda evitando flertar com o espetáculo, porque entende que o espírito do seu tempo está vagando por uma época perigosa, de transição e de falta de ânimo — em grande parte, pelas torturantes exigências comerciais e calendário com vários desfiles ao ano. Por isso que algumas apresentações de moda hoje parecem deslocadas, antiquadas ou insuficientes — ainda que o circo armado pareça fabuloso. O tempo não está para exibicionismo gratuito: McQueen está morto e o outrora performático Galliano atualmente entra em cena de jaleco branco.

Mas, na Gucci, há algo novo a se considerar: Michele é capaz de fazer uma crítica da moda tomando como centro não apenas a sua roupa, mas o conjunto, o aparato que a envolve. Embora, claro, haja muito a se falar sobre os casacos de veludo das bruxas de Salém, os vestidos armados saídos do guarda-roupa de Maria Antonieta, ou ainda aqueles que fariam inveja a condessa sangrenta, Erzsebet Báthory, de estética sadomasoquista.

Elementos católicos, saias sessentistas, camisolas virginais que dão as mãos a peças de couro no estilo inquisidor de plantão. Para Michele, junto de um geek japonês, vai um pierrot, uma freira, um gângster, ou uma estudante indefesa de um colégio interno.

O espetáculo de Michele é outro. Não bebe de processos da moda que já oxidaram e poucos se deram conta. Não está aí para tendência, embora saiba o momento certo de retraí-las e soltá-las. Um exemplo é o que ele faz nessa coleção: reduz o teor brecholento que gerou o barato todo envolta dele para aventurar-se num delírio historicista — o que parece ser, definitivamente, o truque maior do seu gênio.

Nesse espetáculo que evidencia o avesso, vai o comentário sobre os nossos tempos espetaculares, adequadamente ficcionalizados para as telas de Instagram — que é para onde, ironicamente ou não, este show foi parar.

Michele sabe como despertar devoção e sabe nos levar ao seu reino.”Todos pertencemos ao mesmo circo”, disse em tom solene. “E eu realmente quero continuar repetindo esse ritual.”

Que assim seja!

 

 

Sobre o autor

admin:

0 Comments

Compartilhe a sua opinião!

Seu e-mail não ficara público. Campos requeridos estão marcados com *

Deixe um comentário