Visível invisível

Visível invisível

18 de fevereiro de 2009 Arte, Moda, No Radar 0


“It is only shallow people who do not judge by appearances. The true mystery of the world is the visible, not the invisible” – Oscar Wilde

No final do século dezoito e começo do dezenove, a derrocada da aristocracia e a ascensão industrial estabeleceram novos hábitos e formas para a vida cotidiana, acionando uma outra revolução, colateral, em tom menor, mas nem por isso menos reveladora, no âmbito do guarda-roupa masculino.

Para entrar em acordo com as transformações na arte, na arquitetura e com os novos trânsitos sociais, que exigiam formas objetivas e simplificadas, os homens, gradativamente, desgostaram das perucas complexas, dos tecidos adamascados e dos lustrosos sapatos de salto alto. Também dispensaram as reverências exageradas e teatrais, o pó branco que disfarçava as rugas e as tintas vermelhas para realçar as bochechas. Desses itens quase ninguém deu falta, por isso também aqui serão deixados de lado, para nos restringirmos apenas ao vestuário.

Tratado como uma renúncia masculina ao jogo das aparências, o fenômeno foi teorizado por J. C. Flugel, no seu livro The Psicology of Clothes, de 1930. Ao identificar esse momento de apagão nos estilos suntuosos do vestuário, o autor registrou o nascimento de um meio potente de nivelamento social, o terno contemporâneo, esclarecendo muitos aspectos das relações dos homens com suas roupas. Contudo, a noção de desistência da diferenciação em favor da semelhança no plano social e do senso meramente utilitário, nunca me explicou satisfatoriamente a questão.

Agora, sob demanda de escrever um texto sobre moda para homens, a teimosia pouco embasada voltou à tona e decidi examinar melhor sua origem, consciente de que seria inevitável colocar em cena duas figuras masculinas fundamentais na minha formação e escrever um texto em que análises objetivas colidiriam com experiências na primeira pessoa.

Vou dividir o que pode ser chamado de minha educação estética em duas partes. A primeira, na infância, deve-se à proximidade com a alfaiataria no atelier-loja do meu pai, em meio ao trânsito de clientes, às ferramentas e aos zelos característicos, alinhados em uma série de processos que resultavam em peças acabadas de vestuário. A segunda deu-se logo ao ingressar na faculdade de Belas Artes, também sob o magnetismo de outra presença masculina. Nela, o ambiente familiar foi substituído pela convivência com uma figura pública em sala de aula, o escultor Amílcar de Castro.

Tomo a liberdade de confrontar essas experiências, não exatamente como um contraponto ao aprofundado estudo de Flugel – ainda que me sinta tentado e ceda aqui e ali – mas como uma reflexão sobre as relações entre arte e moda, dessa vez centrada na intimidade com processos nos dois campos e na identificação de estilos sustentados pelo rigor da forma e da técnica. Para tranqüilizar o leitor, esclareço que, ao recorrer ao filão pantanoso da história pessoal, com seus inevitáveis rebatimentos emocionais, comprometi-me a aplainar o impulso egoísta com um relato que tivesse alguma validade profissional. Sem que haja nenhuma garantia de que tenha conseguido o que me propus a fazer, é este o resultado.

 

A Alfaiataria

Na alfaiataria familiar, era muito bom observar os tecidos nas prateleiras, furtar pequenos pedaços de giz e desobedecer às advertências quanto ao desenho agudo das tesouras prateadas. Os objetos mais intrigantes eram aqueles construídos ali mesmo: almofadas para passar a roupa e pincéis feitos de retalhos. Havia ainda o dedal de metal, para proteger os dedos das agulhas e o pano das gotas de sangue. Pouca coisa superava as elegantes réguas curvas de madeira e os arabescos decorativos na superfície negra e polida das máquinas Singers. A experiência de moda por excelência naquele environment2,, entretanto, era a prova de roupa. A operação de retirar uma peça do corpo, devolvê-la à mesa e redesenhar a curva, refazer o alinhavo e vestila novamente, encerrava minutos de grandiosa tensão, que só a comprovação do acerto aliviava. Quem já presenciou a cerimônia de prova de um paletó, suspenso por delicados pontos manuais e alfinetes, sabe bem a que me refiro.

Essas foram vivências absorvidas de maneira direta, percebidas entre o assombro e a banalidade como se dá com qualquer garoto e, por muito tempo, não implicaram a necessidade de reflexão. Inevitavelmente, no quadro de valores que se desenha para um profissional de moda, a alfaiataria, aos poucos, impõe-se como o sistema sofisticado que é, demandando maior atenção.

A palavra alfaiate deriva do árabe e, assim como no italiano, sarto, e, no espanhol, sastre, está ligada à idéia de coser, costurar, conseqüentemente, de unir. No inglês, diz-se tailor e, no francês, tailleur, cujo sentido é cortar, talhar. A junção desses significados, cortar e unir, constitui as operações básicas dessa que pode ser considerada a melhor técnica para construir roupas.

Existe uma dimensão na alfaiataria que foi perdida na produção em série e que só encontra equivalente no terreno da alta costura. Nela nenhuma medida é pré-existente e todos os contornos e volumes são definidos a partir de um corpo particular, que tanto pode ser real ou idealizado, como veremos.

Essa arte antiga sedimentou seus fundamentos atuais na Inglaterra no período crepuscular dos trajes espalhafatosos da aristocracia, como já foi dito no início deste texto. Na época, a revolução francesa rejeitou as práticas refinadas da moda e os ingleses souberam tirar partido do momento, apurando sua alfaiataria e criando as bases para o terno moderno, composto por calça, colete, camisa e gravata.

Até então, a roupa masculina não lidava com a noção de ajuste (o fit), mas com a visualidade expressa nos elementos decorativos, no tecido e na cor. Treinado no trabalho com a lã, material leve e armado que permitia a moldagem solta do corpo, o alfaiate inglês, gradualmente, libertou-se da limitação de duplicar a anatomia original, passando a alterá-la de acordo com o gosto dominante ou com sua imaginação ou com a do cliente. Essa capacidade de construir um corpo ideal, somando ou subtraindo volumes, passou a ocupar o centro dos interesses da clientela masculina, que adotou a construção do corpo como expressão e, a partir dessa possibilidade, formatou suas representações sociais através das roupas.

A alfaiataria envolve grande capacidade projetual, virtuosismo na hora de traçar o molde e maestria nos movimentos irreversíveis no uso da tesoura. Fisicamente é um desses ambientes que antecedem as mediações industriais e cujos instrumentos têm o desenho claro da sua destinação. Não foi possível substituir essas ferramentas até agora nem se intenta fazê-lo em um futuro próximo ou distante, elas permanecem intocadas e nem assim estão relegadas como curiosidades a um canto nostálgico do uso e da percepção. A linha, aparentemente banal, os moldes em papel e os grandes balcões pertencem tanto ao passado quanto emitem sinais de qualidade para a apreciação contemporânea. Há poucos sistemas de objetos e operações ocupando esse lugar nas sociedades modernas, eles representam atividades em que a habilidade artesanal, que caracteriza a produção em pequeno volume, ficou preservada e paradoxalmente valorizada pela sua inadequação ao cânone vigente da reprodutibilidade em série.

Amílcar de Castro

“O corte em Amilcar é um traço estrutural, não um adereço.” Tadeu Chiarelli3 Na sala de aula, o professor insistia no uso de lápis duro, dispensava borrachas e devolvia a cada aluno a responsabilidade do gesto pela impossibilidade de apagar um traço feito. Em paralelo à didática singular, a convivência cotidiana com a escultura do artista ensinava sobre conjunção entre projeto e objeto final, que, no caso dele, parecia abolir o tempo e o processo entre uma coisa e outra. Uma ilusão ratificada pela aparente facilidade com que seu pensamento-gesto rompia uma chapa de aço de 10 cm de espessura e peso medido em toneladas, porém, frontalmente contradita pela evidente impossibilidade do fato. Cada idéia do escultor era mediada por maquinário industrial pesado.Riscar, cortar, dobrar, com esse conjunto de poucas operações e de um único material, ele fazia brotar obras grandiosas, moldando o espaço em torno com a mesma eloqüência que domava o ferro.

De muitas formas, a obra do escultor e as peças da alfaiataria são aparentadas nos processos. Tanto em uma quanto em outra as linhas de corte e dobra encerram gestos sem volta, construindo volumes a partir do desenho de silhuetas que se projetam do plano. O modernismo essencial de Amílcar, com sua economia de formas e renúncia a qualquer tipo de adorno, constitui outro paralelo confrontável. É possível elencar ainda a ética na exigência pela qualidade e a dignidade no respeito à natureza dos materiais, princípios sob nenhuma hipótese negociáveis em ambos os casos, e a consumação formal em objetos que transmitem certa austeridade e concisão.

Naturalmente, as associações param por aqui e a arte e a moda se distanciam nos seus propósitos, sentidos e alcances. Nesse momento, é hora de abrir mão de aproximações e retomar a experiência a partir do ponto em que ela foi requisitada, como reflexão sobre as formas pelas quais o homem interage com suas roupas e o entendimento das técnicas desenvolvidas nessa relação.

De toda forma, que fique desse cotejamento a idéia de que as ações formativas e criadoras, sejam elas para dar corpo à arte ou a uma peça de roupa, se equivalem na dignidade do gesto e no sentido de perfeição de quem as pratica.

 

Arremate

A mutabilidade do corpo feminino, construída com o auxilio da moda em estilos ornamentais e oferecida em regime de superexposição, concorre para obscurecer o fato de que a roupa masculina evolui de forma consistente, ainda que segundo códigos específicos. Aceitar que essa evolução apenas se dá de forma lenta e sob ação de forças conservadoras é incorrer no erro de subestimar suas particularidades. Deslocando o ponto de vista para uma análise estilística e não comparativa, essa produção pode ser avaliada como a obra sinfônica que é, ainda que executada com recursos de câmara. No contexto do vestuário masculino, as texturas, a extensão da cartela de cores e a variação dos ornamentos e aviamentos são substituídos quase que inteiramente pelos componentes essenciais: o tecido, quase sempre assemelhado, o corte e a costura. A roupa extraída dessa receita de fundo minimalista estabelece um diálogo em plano fechado com o corpo, fundindo-se a ele de forma a tornar-se indissociável. A partir daí, essa conversa em voz baixa é fundadora de um léxico difícil de ser comparado a outro.

No plano geral, cada manifestação diz respeito ao desenho de sucessivas variações da silhueta: estreita na parte de cima e ampla na parte inferior nos anos 20, ampliada na área dos ombros nos anos 40, etc.; e, na idealização do corpo particular: nivelando os ombros ou alongando um tronco curto, por exemplo. Contudo, de um terno não se pretende uma reunião de partes, mas uma forma indivisível, formada pela roupa e seu portador.

Essa simbiose entre tecido e corpo é responsável pelo seu caráter volumétrico e também pela contraparte gráfica, de recorte, de desenho, de silhueta. É natural que, abraçando linhas estilísticas de concisão e apuro, o adorno ficasse de fora da equação. A idéia é que, ainda assim, nesse jogo de lances quase invisíveis, o homem não renunciou a investigar as formas visíveis das suas roupas. O fato de ter permanecido como coadjuvante nesse sistema de exibição amplificado ajuda a corroborar a idéia de renúncia e de indiferença ao jogo das aparências. No entanto, também pode ser visto como resultado de uma cultura predominantemente masculina que soube expor o corpo feminino para sua própria apreciação e manter-se em grande parte como observador e não como protagonista do sistema de construção midiática da corporalidade, enquanto cultivava com relativa independência um estilo particular.

Sobre esse quadro, pode-se dizer que ele está ultrapassado, com ambos os sexos equivalendo-se dentro de novas regras. O foco deste texto não é, todavia, examinar comparativamente essa diferenciação, mas ater-se à especificidade da construção do vestuário masculino a partir da mediação oferecida pela alfaiataria, que entra, no novo século, como elemento de distinção inequívoca em meio à produção massificada, dá as regras também para a roupa feminina e mantém-se afinada com os sentidos da contemporaneidade. Nenhuma técnica e suas derivações estilísticas, mesmo que fossem frutos de um colapso do gosto em favor do meramente utilitário, teriam tamanho poder de influência sobre as formas estéticas desta e de outras épocas.

Reitero que optei por adotar a idéia de filiação a um estilo como fator determinante das formas masculinas de vestir e à alfaiataria como o suporte técnico para sua expressão. Sabe-se que um bom alfaiate faz desaparecer barrigas e brotar músculos como em um passe de mágica, poder hoje dividido com as academias de musculação. Nesse longo período de aparente indiferença, foi essa habilidade que fez da silhueta, ou seja, do recorte que o corpo desenha no espaço, a grande contribuição da moda masculina, não como resultado de uma renúncia, mas como fundação deliberada de um estilo para o homem moderno.

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